A cura pela elipse

Em uma instituição psiquiátrica, uma mulher lê o início do conto do Barba-Azul, e afirma saber como a história termina: no assassinato deste pelas mãos de sua jovem esposa. Um homem, voltando do trabalho, passa por um túnel, de onde retira um cano da parede e leva consigo. Em um quarto escuro, ele usa o cano para matar uma mulher que está na cama. A seguir, o detetive Kenichi Takabe (Kōji Yakusho) chega à cena do crime, cercada por policiais, encontrando o corpo ensanguentado da mulher marcado por um X e, logo em seguida, a carteira do homem, com sua identidade. Enquanto todos elaboram planos para uma busca pelo culpado, o detetive o descobre abrindo uma portilha no corredor.

Estes cinco minutos iniciais já nos introduzem ao caráter elíptico e sintético de Kyua (A Cura, 1997) de Kiyoshi Kurosawa, que acompanha a investigação de uma série de assassinatos estranhos, como este que acabamos de ver. Os assassinos são pessoas aparentemente normais, que não escondem suas identidades nem negam seus atos, mas não parecem ter grandes motivações para justificá-los, como se agissem sob algum tipo de transe. Marcam suas vítimas com um corte em formato de X na altura do pescoço, novamente sem saber o motivo ao certo. Todas as pistas apontam para um fator externo, para algum tipo de influência que age sobre eles – chegam a mencionar que “o diabo os mandou fazerem”.

Ouvimos apenas o final do conto de Barba-Azul, não sabemos como a história chegou ali, como terminou em sua morte. O mesmo pode ser dito do primeiro assassinato que presenciamos, o ponto de partida de Kyua, e o movimento que o filme fará então será de trás para frente, aos poucos revelando o que foi omitido. Isso será feito sem pressa, de modo que a cada novo assassinato nos familiarizamos um pouco mais com o modus operandi dos crimes. Na verdade, cada um destes parece oferecer mais perguntas do que respostas, de modo que a aura de mistério nunca se dissipa inteiramente, partes do processo continuam ininteligíveis, outras se mantém na penumbra.

O detetive Takabe trabalha em conjunto com o psicólogo forense Shin Sakuma (Tsuyoshi Ujiki), buscando em vão encontrar algum tipo de relação entre os assassinos. Frustrado com a falta de resultados, o detetive chega mesmo a sugerir ao colega que talvez exista algo em comum no passado dos culpados, algum trauma de infância que justifique seus atos. A proposta é absurda, ambos o reconhecem; este não é um caso possível de decifrar pela psicologia, assim como este não é um thriller psicológico, apesar de partir de várias premissas deste sub-gênero – um policial consumido tanto pelo caso quanto por sua vida pessoal, uma série de assassinatos em uma cidade grande, etc. Kyua vai descender por suas próprias vias ocultas, da mesma forma que o verdadeiro antagonista do filme, Mamiya (Masato Hagiwara), o “diabo” que influenciou os assassinos, parte da psicologia para adentrar em seu submundo, seu “gêmeo do mal”, a hipnose.

Sua primeira aparição é também misteriosa. Em uma praia, um homem encontra outro que parece ter perdido sua memória, o leva para casa. Mamiya é o nome escrito em seu sobretudo, como passa a ser chamado. Todas as perguntas que o dono da casa faz a Mamiya, que vaga pela casa como se procurasse seus pontos mais escuros, são rebatidas com outras perguntas, até que enfim ele conta ao estranho sobre sua vida, sua esposa. Mamiya acende seu isqueiro – ato cujo som ouvimos mais alto do que deveríamos – que parece demarcar a nossa passagem para uma outra instância. Na manhã seguinte, a esposa terá sido assassinada por seu marido, que então pula da janela.

Mamiya é encontrado no topo de um telhado e levado para uma delegacia. Ali, vemos o mesmo processo se repetir: ele afirma não se lembrar de nada e a cada pergunta que o policial lhe faz, ele devolve outra. Mas aqui, parece haver um problema, há outro policial na sala, que parece distraído escrevendo algo. Quando Mamiya vai dar o bote, perguntando ao policial quem ele é, o outro homem para de olhar para seus papéis e se vira, interrompendo a sequência hipnótica. Mamiya terá que começar de novo. Ele levanta, fuma um cigarro, e espera o segundo policial sair da sala para continuar. Se senta na cadeira onde o homem que saiu estava sentado, apaga a luz e acende seu isqueiro. No dia seguinte, o policial hipnotizado irá matar seu companheiro. As vítimas de Mamiya parecem aleatórias, como se não fossem escolhidas nem mesmo por ele, e sim meras casualidades decorrentes de onde ele vai parar, de para onde o levam.

A vítima a seguir será uma médica, uma vez que ele é levado para um hospital. Uma cena com a personagem antes já sugere certas dificuldades que ela enfrenta no seu trabalho por ser uma mulher, quando um paciente anterior sugere debochadamente que o pedido da médica para ele abaixar as calças teria natureza sexual. Uma vez atendendo Mamiya, vemos o processo com o qual já estamos familiarizados se desenrolar. Como não pode acender um cigarro dentro do hospital, ele  aqui recorre à água da torneira que usa para encher um copo. O fogo, então, era uma pista falsa. O ritual pode ser feito com outros elementos. O que parece importar é mais uma constância de som e movimento sutil. Mamiya derrama no chão a água do copo que acabou de encher. A médica acompanha o caminho da água, assim como nós, agora em um plano próximo. Esta escorre lentamente, escurecendo o chão acinzentado da sala por onde passa, como se tivesse vida própria.

O processo de Mamiya é semelhante ao de Kurosawa: ele trabalha com coisas invisíveis a partir de sugestões, usando aquilo que tem a seu dispor em cada cômodo para montar sua cena. Afinal, seu ritual de hipnose não deixa de ser uma cena, a única diferença desta para o teatro ou cinema é o nível de envolvimento ou submissão que o espectador tem com aquilo que vê. A água negra que aos poucos colore o chão ou, em outro momento, pinga brilhante do teto, a pequena chama do isqueiro, ou a escuridão palpável dos cômodos, são protagonistas ativos da construção plástica do filme. O mesmo pode ser dito sobre as mídias antigas com as quais Takabe se depara ao longo da trama: o filme japonês do final do século XIX que registra uma hipnose, ou a gravação de um fonógrafo do que parecem instruções cortadas para o ritual. Nenhum dos dois registros, com sua textura granulada e distorcida, seu conteúdo obscuro e incompleto, funciona como pista para resolução do caso. Eles parecem estar ali muito mais por seu valor enquanto significantes do que significados; e no entanto não são servem um papel meramente decorativo, mas afetivo, hipnótico.

Se o ritual de hipnose é aqui representado como uma performance teatral, estes elementos devem ser considerados atores tanto quanto as personagens. Enquanto pingam, tremem, piscam e lentamente se espalham pelos ambientes, eles são indícios tangíveis deste processo que, sem isso, seria invisível. É importante que estas evidências sejam materiais uma vez que o ritual não apenas lida com forças invisíveis mas faz de tudo para se infiltrar naturalmente nos momentos cotidianos.

Após derramar a água na frente da médica, Mamiya já tem domínio sobre a mulher, e começa a trazer à tona as frustrações que ela passou no decorrer da profissão. Ele chega então onde quer chegar, em quando ela dissecou um homem, o primeiro homem nu que ela viu, o prazer que sentiu ao abri-lo com o bisturi. Mamiya não implanta uma ideia inteiramente nova na cabeça de suas vítimas – se é que podemos ainda chamá-las assim -, mas traz à tona pensamentos previamente existentes, talvez reprimidos. Não se utiliza de palavras ou objetos especiais, mas daquilo que já estava ali presente.

Kyua é um filme que se dá majoritariamente entre quatro paredes. Temos, claro, excessões importantes que se dão do lado de fora, como as discussões entre Takabe e Sakuma no telhado, ou as andanças de Fumie Takabe (Anna Nakagawa), esposa do detetive, pela cidade. Mas o filme se dá, em essência, em interiores, onde a cena se desenrola através da coreografia das personagens e suas interações com os objetos, não muito diferente de como seria em um palco teatral. O trabalho de Mamiya envolve a concentração do olhar de suas vítimas nestes elementos que manipula e, para isso, necessita de um espaço restrito. O mesmo pode ser dito sobre o trabalho de investigação ou interrogação de Takabe, também carregados de tensão. Isto não significa que o filme não seja dinâmico, a montagem é provavelmente aquilo que há de mais expressivo nestas cenas, os momentos precisos quando enfim passamos de planos gerais para primeiros planos, planos fixos para planos em movimento.

Uma cena interessante neste sentido é a primeira aparição de Fumie. Aqui, a princípio, não temos uma tensão maligna ou investigativa, mas outro tipo, inquietante justamente por se dar no núcleo familiar. Já havíamos visto a personagem na breve cena inicial, em um hospital psiquiátrico, mas ainda não enquanto esposa do detetive. Kenichi Takabe chega em casa e acende as luzes, o que vemos através do vão de uma porta. Um barulho contínuo aumenta uma vez que ele abre outra porta enquadrada, a da lavanderia; a fonte do barulho se revela, uma máquina de lavar roupa. Ele abre a tampa da máquina e não há nada dentro. Vai até a cozinha, onde esquenta no microondas seu jantar que o espera em cima da mesa posta. É então que Fumie entra em quadro, sem vermos muito bem da onde e cumprimenta seu marido, que pergunta se lhe acordou. Apesar de haverem indícios de que já havia alguém em casa – a máquina de lavar, a mesa posta -, a chegada solitária de Kenichi e omissão de Fumie em um primeiro momento são o suficiente para fazerem sua aparição repentina ser fantasmagórica.

A câmera aqui começa a se movimentar e acompanhar Kenichi, enquanto sua esposa anda de um lado para o outro na casa resolvendo pequenas tarefas, quase como se estivesse se esquivando do enquadramento, também em uma espécie de transe. Quando Kenichi lhe pergunta o que fez durante o dia, ela lhe responde que nada. Uma vez que sai de cena, logo ouvimos novamente o barulho da máquina de lavar, que parece agora reproduzir o comportamento oco de Fumie.

Como Mamiya, Fumie mantém um olhar vago, não olha nos olhos de seu marido, e logo veremos que esta não é a única semelhança entre os dois. Sua atitude esquiva também parece expressar um vazio, assim como declara o antagonista quando diz que “todas as coisas que costumavam ficar dentro de mim, agora estão fora”. A diferença é que, enquanto Mamiya chega a esta condição voluntariamente, estudando teorias da hipnose, o caso de Fumie é nitidamente patológico, o filme deixa claro que a personagem tem alguma doença psiquiátrica. Se Mamiya se esvazia para conseguir ver e eventualmente controlar aquilo que está dentro dos outros, a situação de Fumie está mais próxima àquela de suas vítimas. Ao longo da trama, ela parece constantemente se esquecer de para onde vai e vagar pela cidade perdida, como se não fosse mais dona de si.

Eventualmente, o próprio Kenichi Takabe também perderá o controle. Na casa de Mamiya, localizada em meio a um ferro-velho, Takabe encontra a trajetória transformadora desta figura enigmática, um ex-estudante de psicologia. A câmera passeia pelas estante de livros do jovem, primeiro entre estudos sobre diferentes distúrbios de personalidade, passando por Carl Jung, para enfim chegar aos livros de Franz Mesmer, médico alemão que no século XVIII cunhou o mesmerismo, ou “magnetismo animal”. A teoria parapsicológica, precursora da hipnose, acreditava existir uma força invisível dentro de cada ser vivo que poderia ser movimentada através de movimentos com a mão a fins curativos. Em outro quarto na casa de Mamiya, Takabe encontra encoberto por um lençol o que podemos entender como o desdobramento prático das teorias estudadas: o cadáver de um macaco retorcido, puxado por cordas como uma marionete.

Um dos livros encontrados por Takabe intitula-se “O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do iluminismo na França” (de Robert Darnton), título curioso considerando a natureza obscura, tanto literal quanto metafórica, de Kyua. Se a trama detetivesca costuma caminhar rumo ao esclarecimento dos fatos, Kyua, como o Mesmerismo, fará o movimento contrário. Até aqui, acompanhávamos a investigação de Takabe paralelamente à trajetória de Mamiya, um movimento de elucidação frente a um de sombreamento. É justamente quando Takabe acredita haver vencido, capturado o inimigo, que este prevalece.

A visita às origens de Mamiya sinaliza uma virada significativa no filme. O caso, em si, já foi solucionado, mas algo acontece após o detetive entrar na casa, como se aquela atmosfera carregada permitisse a infiltração de Mamiya não apenas na mente do detetive, mas na estrutura do filme. Os primeiros sinais da infiltração se dão em flashes rápidos de imagens anteriores que piscam assim que Takabe sai da casa. Voltando para sua própria, encontra sua esposa morta, pendurada do teto, em um aparente suicídio, cena que dura alguns segundos até o detetive voltar à realidade e perceber que se tratava apenas de uma visão.

Revoltado com a intrusão, Takabe vai tirar satisfações com Mamiya no local onde este está preso, um quarto escuro e isolado, cenário perfeito para o processo hipnótico. Ali, Mamiya nem precisa adentrar nos pensamentos reprimidos do detetive, este já assume por conta própria que sua esposa é um fardo. Takabe parece igualmente atraído e repelido pelo processo, percebemos haver um misto de temor e desejo em sua visão de sua esposa morta. A hipnose de Mesmer, não por acaso, é considerada uma espécie de cura através do esvaziamento. “Te fará feliz, vazio”, diz Mamiya. Se a cabeça de Fumie parecia impenetrável para Takabe, seus sentimentos homicidas em relação a ela também são mantidos em segredo – assim como no conto de Barba Azul o marido guarda segredos atrás de uma porta fechada, cadáveres de suas ex-esposas.

É difícil precisar o momento exato em que Takabe perde o controle de si, ou mesmo se isso de fato acontece, uma vez que o filme também se torna cada vez mais elíptico. A ordem das cenas, sua concretude, sua objetividade, tudo é colocado em questão. Se até a metade de sua duração o desenrolar desta narrativa nos era apresentado de forma direta e até mesmo rígida, ainda que nem sempre elucidativa, tudo começa a se embaralhar uma vez depois que o detetive adentra no epicentro do mesmerismo. Kurosawa vai acompanhar este espiralar com tanta cautela que a impressão é de que nem ele saberia onde iria chegar, como se também tivesse sido acometido de surpresa pela escuridão e intermitência que tomam o filme. Mas tudo isto estava ali desde o começo, à espreita, em cada brasa de cigarro, em cada goteira, em cada canto mal iluminado.

Paula Mermelstein Costa

Jerzy Skolimowski, o estrangeiro

Costumo achar que começos de filmes são sua melhor parte. Nos melhores casos, adentramos um mundo inteiramente novo, cujas dinâmicas internas já foram estabelecidas antes de nossa chegada e cujas regras de funcionamento ainda não estamos familiarizados. Esse estranhamento inicial em geral dura pouco, mas não no caso dos filmes de Jerzy Skolimowski. Nestes, não apenas a compreensão inicial a respeito do que se trata o filme é adiada, como, quando finalmente conseguimos entender o que está acontecendo, este mundo já está se moldando em outra coisa.

Suas tramas partem de cenários realistas, ainda que por vezes inusitados para um filme, que são gradualmente levados ao extremo, despidos de suas máscaras de civilização: o despertar sexual de um jovem em seu primeiro trabalho, em uma piscina pública em Londres; um cabeleireiro em Bruxelas em busca de um Porsche para competir no rali; a reforma de uma casa londrina por imigrantes poloneses ilegais; um andarilho que chega em um vilarejo no interior da Inglaterra; um afegão fugindo do exército americano em uma floresta polonesa; a trajetória de um burrinho pela Europa. Logo, qualquer princípio de normalidade que pudesse existir em tais premissas é desvirtuado por alguma inquietação das personagens – desejos carnais, ânsias por poder e controle, instintos assassinos, dor, fome, medo. A única constante destas histórias parece ser sua inconstância, sua movimentação contínua.

A própria trajetória do cineasta, aliás, parece um pouco regida pelo mesmo princípio de variabilidade. Nascido na Polônia, onde começa sua carreira, Skolimowski fez filmes na Bélgica, Inglaterra, Alemanha, e nos Estados Unidos, além de co-produções entre dois ou mais países. Antes de começar a trabalhar com cinema, foi boxeador e escritor, além de trabalhar ocasionalmente como ator, em alguns de seus próprios filmes e em produções hollywoodianas como Mars Attacks! e The Avangers ou em produções independentes como Eastern Promises de David Cronenberg, onde interpreta um imigrante russo, ex-KGB, na Inglaterra.

Para além da singularidade das tramas de seus filmes, enfim, cada um deles é feito também em um contexto de produção distinto. Línguas, países, circunstâncias e orçamentos mudam; no entanto, não podemos dizer que Skolimowski se adapte a cada novo entorno. Seus filmes, por mais distintos entre si, retém em comum justamente o estranhamento. Cada experiência é nova e alienígena, seja esta a de entrar um país estrangeiro, em uma floresta ou em uma piscina. Cada novo cenário é, também, um potencial palco para experimentações, cada novo objeto um possível adereço de cena. Quando seus filmes se distanciam de suas premissas realistas é, sobretudo, rumo a invenções plásticas, trabalhadas com luzes, tintas, vidros, espelhos, água, sempre no âmbito diegético.

Moonlighting (1982)

Moonlighting (1982) talvez exemplifique o caráter peculiar do cineasta melhor do que qualquer outra de suas produções. A estranheza do filme, passado na Inglaterra, é encontrada a partir de uma situação a princípio banal: a não compreensão do inglês por parte das personagens. Quatro poloneses vão para Londres trabalhar na obra de uma casa, sem vistos de trabalho. Nowak (Jeremy Irons), como o único entre eles que fala um pouco de inglês, torna-se uma espécie de líder; em terra de cego, quem tem um olho é rei. É a partir deste trunfo da personagem que a trama irá se desenrolar.

Dado o status ilegal de sua estadia e o fato de que, durante ela, a Polônia entra em um período de lei marcial, o controle inicialmente cotidiano de Nowak sobre os outros homens logo ganha proporções autoritárias. Mantém os outros três isolados na casa e ignorantes da situação instável de seu país de origem. Nowak torna-se uma espécie de mídia manipuladora, sendo a única  comunicação dos outros com o mundo lá fora, quem decide o que entra e o que sai de comida, dinheiro e informação. A situação chega a tal extremo que  Nowak começa a controlar até mesmo o tempo de seus companheiros, alterando as horas do relógio, diminuindo o seu tempo de sono e mentindo para que terminem logo a obra.

O curioso é que o protagonista não usa esse poder para ganho próprio; pelo contrário, tudo que faz parece ter o intuito de manter uma ilusão de normalidade dentro da casa. Ele tem um trabalho a fazer e não vai interrompê-lo, mesmo que seu país não exista mais, mesmo que não haja motivo para voltar, aquele é seu único propósito. Para manter as aparências dentro deste sistema isolado, Nowak se colocará em situações absurdas do lado de fora da casa. O dinheiro que seu empregador lhes deu, por exemplo, começa a faltar, e ele tem que criar uma operação complexa para roubar comida no supermercado. Acompanhamos estes acontecimentos junto à voice-over do protagonista, com sua narração direta que, apesar de subjetiva, apenas reitera o caráter objetivo de suas ações e mergulha o espectador ainda mais profundamente neste mundo delimitado.

Os quatro poloneses estão a todo momento buscando soluções para seus problemas, sempre concretos: enquanto Nowak se aventura nas ruas buscando maneiras de levar comida em dobro do supermercado sem que o gerente perceba, seus companheiros destroem e re-constroem a casa inteira, de modo que o cenário, assim como a narrativa, está em constante transformação. A primeira coisa que os homens fazem ao chegar na casa é reaproveitar uma lata de cerveja como panela, já indicando que tudo aqui será reutilizado. Skolimowski irá renovar a narrativa na mesma lógica econômica, com os mesmos elementos que já estão em jogo, re-arranjando-os como em um cubo mágico. No final do filme, Nowak utiliza a mesma técnica que desenvolveu para roubar o supermercado – esconder mercadorias em algum lugar do recinto para depois voltar para pegá-los, fingindo que eram seus – para afanar uma echarpe, o único item que leva para uso pessoal ao longo de todo o filme.

Estas questões não são pequenas anedotas na trajetória das personagens, situações menores frente à narrativa maior; como no cinema de ação ou comédia hollywoodiano, elas consistem no cerne do filme, são aquilo que move a trama intrincada adiante. Em ambos os casos, a história em si importa menos do que a maneira com que suas personagens lidam com elementos em cena. A diferença está, principalmente, na natureza das limitações no filme de Skolimowski, que não se tratam de adversidades espetaculosas como terroristas ou ladrões, mas de tempo e dinheiro. Curiosamente, apesar de mais realistas, estas adversidades são mais abstratas do que os inimigos personificados de filmes hollywoodianos, pois não há como enfrentá-las diretamente. Também abstrata, de certa forma, é a limitação espacial em Moonlighting: não há nada que fisicamente impeça as personagens de conhecerem o resto de Londres ou mesmo de voltar à Polônia, o que os limita são as leis (o fato de estarem no país sem visto, a lei marcial em seu país de origem) e a língua estrangeira.

É por esta mistura singular entre realismo e absurdo que a obra de Skolimowski se aproxima também da literatura de Kafka, esta que, nas palavras de Gunther Anders, “deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal.” [1] De maneira semelhante à Nowak, Gregor Samsa está mais preocupado com faltar ao trabalho e mais ocupado com as dificuldades em levantar da cama com seu novo corpo que com o fato de ter se tornado um inseto monstruoso. O espectador de Skolimowski, assim como o leitor de Kafka, é inserido em um mundo estranho sem explicações, como são também, com frequência, as personagens de ambos, ainda que questionem menos este mundo do que lidem com suas consequências [2].

Le Départ (1967)

As personagens de Skolimowski, em geral, têm um único objetivo, que beira a obsessão, e farão de tudo para conseguí-lo. Nesta busca, as ações mais absurdas – e, por vezes, desnecessárias – serão empenhadas. Se, a princípio, parte de uma simplificação narrativa que reduz a trama a um só vetor, esta culmina numa abertura para diferentes e improváveis possibilidades de continuidade. Cada lugar que as personagens vão, cada situação em que se colocam, o ambiente entra em cena tanto quanto elas; tudo se mistura, o filme é matéria manipulável.

Seus filmes costumam trabalhar com protagonistas que acompanhamos durante toda a  sua duração, que parecem estar mais submissos aos acasos ao seu redor do que terem qualquer poder de transformação. O burrinho de EO (2022) talvez seja o exemplo mais emblemático neste caso, estando totalmente sujeito aos seres humanos, dada a condição submissa do animal [3]. No entanto, o sistema não é rígido, e há personagens que parecem ter mais autonomia, como a de Jean-Pierre Léaud em Le Départ (1967).

Enquanto Moonlighting trabalha a partir das restrições materiais das personagens em um cenário fixo, ainda que em constante mutação, em Le Départ parecemos estar diante de um desenho animado, com Léaud pulando de canto em canto de Bruxelas como o papa-léguas. Aquilo que o motiva, afinal, é também uma limitação, da mesma ordem do filme posterior: dinheiro. Mas seus fins e, principalmente, seus meios, são muito distintos. A personagem de Léaud, Marc, um cabeleireiro, está em busca de um Porsche para competir em uma corrida, e tentará consegui-lo de formas inusitadas, jocosas, acompanhado de uma jovem que conhece no meio do caminho.

Desenrolando-se no tempo, afinal, e não apenas no espaço, é o filme que está em constante mutação, em constante movimento. Este movimento é peculiar, não necessariamente retilíneo. As personagens vão quicando pela cidade enquanto a trama é moldada de forma também orgânica, maleável, aleatória. Um espelho se quebra em meio a brincadeiras do casal, mas no mesmo plano já o vemos sendo reconstituído em um rewind, como se nada houvesse acontecido. É depois, inclusive, vendido inteiro em uma loja de ítens usados. No mundo real, este vidro de fato se quebrou, mas no mundo de Skolimoswki, até o tempo é capaz de ser modelado. Não se trata de um cineasta preocupado com registrar a realidade, e sim de esculpir uma própria.

The Shout (1978)

A história de The Shout (1978), adaptada de um conto de Robert Graves, começa a ser contada durante uma partida de críquete em um hospício, e nossa impressão é de que tudo está relacionado de uma maneira intrincada e autônoma como no jogo. Pacientes e funcionários jogam lado a lado, assim como a loucura parece andar junto com a sanidade na história do grito que dá título ao filme, contada por um dos pacientes, Crossley (Alan Bates). Dada sua condição de louco, este é, evidentemente, um narrador não confiável, colocando a veracidade de toda narrativa a seguir em questão; ele mesmo começa o relato falando que a história é sempre a mesma, ainda que ele a conte de “diferentes maneiras, mude a ordem dos eventos, varie os momentos de clímax.” Faz isso, ele continua, “porque gosta de mantê-la viva”, procedimento que se assemelha ao do próprio Skolimowski, que parece também remexer suas tramas com o mesmo intuito.

O estrangeiro, na história, é o próprio Crossley, um andarilho vindo da Austrália, que invade a vida de um casal no interior da Inglaterra, Rachel (Suzannah York) e Anthony Fielding (John Hurt). Anthony passa a maior parte do tempo em seu estúdio, onde faz música experimental gravando sons distorcidos de diferentes combinações de objetos; rolando bolas de gude em uma bandeja com água, passando um arco de violino em uma lata de alumínio rasgada ou acendendo um cigarro muito próximo ao microfone. Assim como a lata de cerveja é transformada em panela em Moonlighting, a bola de gude, o arco de violino e os outros objetos que os acompanham, são transformados em instrumentos musicais. Quando Crossley chega na cidade e depois na casa do casal, afirma haver aprendido com um xamã aborígene um grito poderosíssimo, capaz de matar, entre outros feitiços. Chega a dizer a Anthony que sua música não é nada comparada ao grito, o que o instiga a pedir para ouví-lo.

Os dois vão para um local isolado em meio a dunas envoltas pelo mar, onde Crossley enfim grita, um som que entra como um enxerto, difícil de descrever; agudo e intenso, como muitas vozes gritando ao mesmo tempo ou, ainda, supondo que este foi feito de maneira semelhante aos experimentos de Anthony, poderia ser barulho de algum tipo de aparelho de sucção de ar. O aspecto irreal do grito torna-se mais interessante, justamente, por havermos presenciado antes a fabricação de sons inusitados, que estabelecem um precedente. O som que representa o grito tem certamente um teor fantástico, uma vez que sua verdadeira fonte é omitida e é atribuído à personagem de Alan Bates, mas ele é feito da mesma matéria que os sons produzidos por objetos corriqueiros. Ele se sobressai da premissa de realidade assumida no filme até então, mas esta já não era uma superfície perfeitamente plana, já possuía suas ondulações.

Provando que de fato tem poderes sobrenaturais, então, o grito deixa Anthony catatônico. Voltando para a casa, Crossley seduz Rachel, ao que tudo indica, também magicamente, roubando uma presilha de sua sandália, deixando-a inteiramente submissa a ele, de maneira quase selvagem. Em dado momento, ela anda nua, de quatro, atrás de Crossley, seu corpo se configurando de maneira muito parecida com o quadro Paralytic Child (1961), de Francis Bacon – pintor em cuja obra o grito foi um tema recorrente –, do qual Anthony tem uma reprodução em seu estúdio. Quando isso acontece, a imagem aparece em preto e branco por um segundo, como que para demarcar tal semelhança. Para romper com os feitiços, Anthony deve quebrar uma pedra que aparece em suas mãos nas dunas, depois do grito, objeto que conteria a alma de Crossley. Pequenas pistas como estas parecem plantadas por todo lado, sugerindo que a magia talvez não se restrinja à figura do andarilho, mas esteja espalhada em elementos que já estavam ali antes de sua chegada, ou ainda, como o próprio Crossley sugere antes de começar seu relato, de que as peças estejam embaralhadas, dando a entender que a linearidade não é tão importante assim nesta história. 

A narrativa de The Shout é de fato fantástica, diferente dos outros filmes de Skolimowski, mas sua maneira de trabalhá-la não é muito distinta do resto. A loucura ou xamanismo de Crossley são apenas componentes de um jogo maior, complexo e hermético, onde tudo parece estar relacionado, tudo parece estar vivo, em um funcionamento secreto e misterioso: o críquete, os loucos, a música criada por Anthony, a paisagem de dunas, o grito profundo. A realidade, novamente, não é fixa, mas composta por esta mistura de elementos estranhos e normais, ora orquestrada e controlada como nos experimentos sonoros de Anthony, ora liberada com força disruptiva no grito de Crossley e nos quadros de Bacon.

Deep End (1970)

Este trabalho plástico de Skolimowski aparece de forma enfática em Deep End (1970). Já nos créditos temos uma mistura quase abstrata de elementos vistos muito de perto: uma gota de sangue que escorre dá lugar a canos vermelhos e engrenagens, por onde a câmera passeia até chegar a uma superfície metálica, onde é refletido o rosto de um menino, por fim encoberto por uma mão suja de sangue. Corta-se para uma bicicleta sendo guiada pelo garoto, Mike (John Moulder-Brown). Ele está indo para seu primeiro dia de trabalho em uma casa de banho e piscina pública, onde se apaixonará por outra funcionária, uma jovem um pouco mais velha que ele, Susan (Jane Asher).

Horror e beleza caminharão juntos nessa jornada de descoberta sexual do protagonista, que culmina em assassinato. A casa de banho é, ao mesmo tempo, um lugar de sensualidade e asco, onde todos limites se diluem. A natureza do trabalho de Mike logo se revela ambígua, quando Susan sugere que ele deve oferecer serviços de teor sexual a seus clientes. Estes clientes, de idade muito mais avançada do que Mike e Susan, tampouco parecem ter algum problema em flertar com os jovens e adolescentes. Local intermediário, nem inteiramente dentro d’água nem fora, como um habitat apropriado para a metamorfose de um girino a um sapo, a casa de banho marca a passagem de menino a homem ou jovem à mulher. Ali, ambas as personagens aprenderão sobre o funcionamento do mundo em sua instância mais à flor da pele, onde o mundo do sexo é inseparável do mundo do trabalho. Enquanto Mike nutre uma paixão platônica por Susan, ela trai seu noivo com um instrutor de natação mais velho e casado, que dá aulas para adolescentes na piscina; ambos parecem estar o mais baixo possível na cadeia alimentar, submissos aos mais velhos em todos os sentidos.

A oscilação, em Deep End, se dá principalmente na relação entre as duas personagens, que varia entre a brincadeira, o flerte e a rejeição (por parte de Susan). A obsessão que motiva Mike não é tão definida como os objetivos monetários de outras personagens de Skolimowski, mas marcada pela imprecisão própria do desejo: ele quer Susan, cegamente. Os obstáculos encontrados pelo protagonista, aqui, são tudo aquilo que ameaça este desejo, os namorados de Susan, seu desprezo, ou ainda aquilo que mancha a imagem dela. Quando sai uma noite atrás dela, se depara com um cartaz em papelão, em tamanho real, de Susan pelada, na entrada de um show de striptease. Não apenas Mike rouba o cartaz, mas cobre a imagem com um casaco enquanto carrega o objeto no metrô, onde entra atrás de Susan, e a indaga sobre a figura, incrédulo.

O embate final os dois não poderia acontecer em outro lugar que não dentro da piscina, em uma cena que perceberemos, então, se passar logo antes dos créditos iniciais do filme. Vão parar lá após se atracarem em um parque nevado e a personagem de Jane Asher perceber que perdeu seu anel de noivado. Os dois resolvem tentar encontrar o anel de forma inventiva, traçando um circulo ao redor de onde se atracaram e recolhendo toda a neve dali, depositando-a em um saco. Levam este saco cheio de neve para dentro da piscina vazia, onde montam uma operação complicada para encontrar o anel: usam o calor de uma luminária para aquecer uma chaleira com água, derretendo a neve suja aos poucos dentro da meia calça de Susan, que serve como peneira. A sequência como um todo, não estivesse atrelada a um contexto narrativo, se aproximaria muito do que vinha sendo feito na cena artística do mesmo período, quando a arte conceitual, a performance e a land art surgiam e prosperavam.

Podemos considerar, por exemplo, o trabalho de Robert Smithson, pai da land art, que na década de 70 assumiu, essencialmente, duas vertentes: havia suas intervenções no mundo, suas célebres land arts, e os fragmentos de mundo que trazia ao museu. Neste segundo caso, incluem-se seus non-sites, nos quais dispunha no museu terra e pedras retiradas de locais de entulho – acompanhadas do registro deste processo de transposição, de mapas de deslocamento, fotos dos locais etc. Esta terra e pedras ora eram dispostas em montinhos isolados, às vezes acompanhadas de espelhos que expandiam e confundiam suas dimensões, ora dentro de recipientes delimitados, em formatos de estantes ou de naves espaciais – apesar de lidar com elementos tão concretos e terrenos, Smithson sempre teve uma queda pela ficção científica.

Robert Smithson, Non-site (Franklin, New Jersey), 1968
Robert Smithson, Non-site, Line of wreckage (Bayonne, New Jersey), 1968

Paralelamente a sua produção artística, Smithson escrevia ensaios sobre sua prática, onde um tema central era aquele da entropia. Comumente associada a uma ideia de desordem ou caos, a entropia é um tanto mais complexa. Simplificando bastante, ela é mais uma medida de aleatoriedade, de configurações possíveis, do que a aleatoriedade em si. Um dos exemplos mais comuns para explicá-la seria justamente o gelo derretendo: quando a água está congelada, suas moléculas estariam mais organizadas e rígidas; uma vez exposta ao calor, passando do estado sólido ao líquido, o nível de desordem destas moléculas (a entropia) aumenta até chegar a seu valor máximo, derretendo inteiramente. Neste estado, o sistema está novamente em equilíbrio, mas, se a água for exposta a mais calor e começar a passar para seu estado gasoso, o nível de desordem das moléculas irá novamente aumentar.

A situação exemplifica a segunda lei da termodinâmica, que diz que “a quantidade de entropia de qualquer sistema isolado termodinamicamente tende a incrementar-se com o tempo, até alcançar um valor máximo”. A entropia costuma estar associada, por isso, com a quantidade de energia perdida em um processo que gera calor – na operação de uma máquina, por exemplo, parte da energia gasta será necessariamente perdida quando a máquina esquenta, não sendo convertida em outra forma aproveitável de energia.

A sequência do gelo em Deep End, que poderia também ser um non-site – a piscina não deixa de ser um “cubo branco”, como é a concepção do museu moderno –, pode servir de metáfora para a obra de Skolimowski de modo geral. Seus filmes são como sistemas fechados (a piscina pública, a obra na casa, a busca por um carro para competir no rali) nos quais as moléculas se agitam em desordem (Jean-Pierre Léaud em Le Départ é uma molécula particularmente agitada) até chegar a seu nível máximo (o grito de The Shout talvez seja o exemplo mais apropriado aqui), e então sossegam novamente. Como na entropia, um nível de energia é necessariamente perdido neste processo. Ainda que as personagens atuem em busca de objetivos específicos (por mais tolos que nos pareçam), o esforço que fazem para tal é notavelmente maior do que o necessário; elas andarão em zigue-zague quando poderiam andar em linha reta. Você pode até transformar o gelo de estado sólido ao líquido, mas é impossível separá-lo da terra, limpá-lo, está tudo sujo e misturado, moléculas em movimento e desordem.

Após encontrar o anel, Mike o coloca em sua língua e fica nu, convidando Susan a também se despir para recuperar o objeto. Deixa-se subentendido, então, que eles vão iniciar uma relação, mas o menino falha de algum modo: pela expressão que ele faz, chegou a seu pico de energia rápido demais. Susan tenta ir embora e ele tenta impedí-la, enquanto a piscina começa a encher. Mike, então, empurra a pesada luminária de ferro na direção de Susan, que aos poucos cai morta na água. O movimento da lâmpada derruba, também, baldes de tinta vermelha. A gota vermelha nos créditos, então, era tinta, não sangue, mas isso pouco importa aqui, onde ambos são, como os sons em The Shout, feitos da mesma matéria fílmica. O corpo sem vida de Susan, Mike que o abraça, sangue, tinta vermelha, roupas, chaleira, tudo boia junto na piscina.

Paula Mermelstein Costa

Notas:

[1] CARONE, Modesto. Introdução. Em: KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. Penguin-Companhia, 2011. p.13.

“ [2]Kafka, por fazer tábula rasa das convenções artísticas e psicológicas e inventar um narrador à sua altura: o narrador não consciente ou insciente, que sabe tanto quanto o personagem e o leitor, ou seja, nada ou quase nada, o que os leva, por uma mediação estritamente literária, ao universo alienado em que todos nós vivemos”. [Ibid, pp.8-9]

[3] Não entrei no filme aqui pois já escrevi sobre ele em outro texto, em uma edição passada da revista: https://limiterevista.com/2022/11/12/eo-de-jerzy-skolimowski-burros-sonham-com-burros-eletricos/

Interview with Kiyoshi Kurosawa

This interview with Kiyoshi Kurosawa took place in the lobby of the NH Collection Mitte, in Berlin, in the morning of February 20th. Kurosawa’s new medium length film Chime (2024) had just premiered at the Berlinale the night before, in a conjoined session with August My Heaven by Riho Kudo, as part of the Berlinale Special program.

Chime is Kurosawa in condensed and simplified form. It is as clear as it is mysterious, as weird as it is mundane, its filmmaking as skillful as it is direct. One of the greatest appeal of horror genre for me is that it depends so much on craft. Sure, because of its well known conventions, it’s probably also one of the easiest genres to emulate with cheap tricks. But to actually create an ambience, an atmosphere, or even a presence, as is the case in Kurosawa’s films, requires a very sensible type of work. Even more so when all the otherworldly elements seem to rise from everyday settings, everyday people, as if they were just lurking behind these very thin layers, waiting for a tiny rip to crack open.

Paula Mermelstein Costa

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© 2023 Roadstead

Paula Mermelstein Costa: An important part of Chime is set in a culinary school – which we soon realize has great potential for violent scenes with its raw ingredients and sharp knives. How did you came up with this setting?

Kiyoshi Kurosawa: There is no great meaning to that, setting this location within the culinary school. But, you know, as you’ve already said, in the school, you have all the tools, the knives and everything, lying around. It is also a space which is cut off from the outside world in a way. And you have this very clear power relationship between the teacher and the students. I chose the classroom because it was easy to understand and visually interesting, as murders and suicides occur in such situations. Visually, it was a great location because it was very clear and easy to understand. 

PMC: I also find it interesting that these characters are doing very bloody, gory work, every day, in the kitchen, but it’s as if that’s dormant, that they don’t think about it very much. And that relates to some of the plots of your other films, such as Cure, where murder is also practiced by people who live rather mundane lives and don’t think about it. It’s as if this feeling lives inside all of us in some way. Do you feel like that’s one of the points of horror stories, to bring those feelings to the surface?

KK: I believe it lurks within all human beings, but it usually doesn’t surface. People who commit murder are rare. However, the trigger, whatever it may be, is incredibly important. For some, it could be a very random, simple trigger, while for others, it might be something that has been building up for years and years. When a truly unfortunate trigger occurs, I think people might easily resort to violence.

In terms of the story, I believe the main character starts fearing crossing three lines. The first is the line of societal law. Those who cross it end up getting caught by the police. They start fearing the police. Another is the fear of doing it again. It’s about morality. Once you step outside the bounds of “thou shalt not kill,” you might end up killing again in a similar situation. You might end up killing your own son, stepping outside the line of morality. The last one is conscience. Having killed someone. This one is quite straightforward, as it involves the fear of the ghost of the person you killed. That’s conscience. When these three lines are crossed, the fear of these three lines suddenly surrounds them. I crafted a story with this structure in mind.

Finally, although these three lines, these three fears, may not be something people consciously think about in their everyday lives, by committing acts like murder, humans come to understand this kind of confinement within these three limitations. Therefore, in the end of this film, though it may seem highly immoral, I wanted to conclude the story with the impression that he took a step towards overcoming these lines, towards breaking free from this fear.

PMC: There are many theories that say that horror movies tend to have two different narrative modes. One, would be the narrative itself, the story progressing, and in the other the narrative would be put on hold so we can experience that other instance, other kinds of moments. I was wondering if you see it that way, such moments as that one in Pulse when the ghost is coming out of the shadows. Do you think that narrative is a bit on hold so we can experience that moment?

KK: Yes, sure. I’m not sure if that answers your question, but depicting ghosts is always a challenging aspect that requires a lot of creative thinking. It can greatly influence the narrative. In other words, the question arises of whether the ghost exists there as a tangible entity or not. It’s a crucial aspect that plays a significant role.

Generally speaking, there are various ways to approach it, but until a certain point in the story, the ghost may not actually exist and could be portrayed as a hallucination or illusion seen only by the protagonist. This means that although it may appear as if the protagonist sees it and it’s there, in the next cut it may no longer be present, leaving the expression limited to being seen solely from the protagonist’s perspective. While many films stop at that point, I usually go one step further. Initially, the protagonist may perceive it that way, but gradually, the perspective is broadened to suggest that the ghost truly exists objectively. This would change the shots we take; it’s not just the protagonist seeing it, but it’s actually there from an objective viewpoint, visible to entirely different people, and in some cases, if approached, it could even be touched. The presence of the ghost is gradually solidified as a tangible entity, making its existence more and more certain. The narrative mode also changes accordingly as the story progresses. That is how films like Pulse were crafted.

PMC: Your films have this very material, tactile, quality to them. They explore different textures, in both sound and image. Abstraction seems also really important, this nothingness or darkness or even noise. Is that something you think about before the shooting, or do you work through it during the shooting?

KK: This is a very interesting question. There are many ways in which you can do that. For me, I would say the most important thing is the location, the place that we are shooting, because when I’m working on the screenplay, I don’t really have this concrete idea of images and sound. Usually, before the shooting, we look for the locations where we want to do the shooting, and then it’s by intuition. I know this place is just the right place to shoot this scene, because you can really imagine a lot of things here. And, as you mentioned, it’s not just about what’s visible there, it’s not just about what’s in the frame. I can imagine what’s going to happen outside the frame. For example, if there’s a window, I can imagine what’s going to happen outside the window. If there’s a room in the back, just by making it dark and mysterious, it sparks the imagination about what’s in there. It’s about finding a place that sparks the imagination of the viewers. Everything starts from there.

PMC: Your work always seems very aware of film history. Is that something important to you?

KK: I’m always drawn to the historical context of films, or truly classic masterpieces that have been filmed in various ways in the past, while always referring to them as a reference and aiming for that. I want to create works that are firmly rooted in the history of cinema. Of course, what I’m making is new, so I have to surpass that, but in order to surpass it, I always think I need to understand what it is first and aim for it from there.

I’d like to add that one dilemma I always encounter here is, when trying to base a work on a film from the past, how far back in the past should we go, and which work should we base it on? Even though it’s in the past, the history of cinema is quite clear in terms of when it was born and how it evolved. If we want to go back, we can really go back to the very beginning. It makes quite a difference depending on where we choose as the foundation. For example, when we go quite far back, there’s no sound, so it becomes a silent film. Do we go all the way back to silent films, or do we decide that sound has been present from the beginning? A major choice here is whether to go with black and white or color. But once it starts to differ, depending on where we go back to, our stance and even own current stance can vary significantly. That’s the difficult part.

PMC: Some of your films remind me of sci-fi Hollywood films from the 50s. Like It came from outer space, The thing from another world, Invasion of the Body Snatchers. I was wondering if you like this type of film, if that’s a reference in some way.

KK: I like them, but I’m not sure if I’m influenced by them. Maybe a little. I would say I was very strongly influenced by the horror movies of that time. One of the major themes of sci-fi movies from the 50s and 60s was the end of the world, humanity vanishing – and you don’t see that so much in horror movies… I rarely make science fiction movies, but I do make horror movies where civilization ends. In films like Pulse, Cure, I also pick up themes like this. I often make stories that end up going to that kind of place. So I guess I could say that, rather than horror, it may be the influence of these sci-fi movies from the 1950s and 1960s.

PMC: I was wondering how these different types of technologies enter your stories; the CCTV camera in Chime, the internet in Pulse, the daguerreotypes, films, all this old media and new media.

KK: I think about it to some extent, but I don’t know if there is a deep intention behind it. Since movies themselves are made in a form that is precisely a fusion of old and new technologies, I’m naturally interested in the stories that deal with it. The fascination with new images or new communication tools and, on the other hand, their horror – movies tend to be interested in these things inadvertently. I find it intriguing when movies handle this in visual storytelling.

PMC: I’ve seen that you mentioned in a lot of interviews how you were influenced by the work of Shigehiko Hasumi. I was wondering what is it about his vision in particular that interests you?

KK: I’m impressed that you are aware of that. Yes, Mr. Shigehiko Hasumi is a film critic that taught me about cinema when I was a university student, and he had a very strong influence on me, not only in the realm of movies but also in various fields, including ways of living. That influence remains strong even today. Without a doubt.

In simple terms, what I learned from Mr. Hasumi about movies can be summarized in two points. First, when watching a movie, truly watch it, truly listen. Instead of solely focusing on deciphering the story, free yourself from that and truly see what’s being depicted, what’s visible, and truly hear what’s being conveyed. It’s about seeing and hearing. Refining this sense and not being dragged solely by the story. That had a significant impact on me. Secondly, movies, whether you are watching, making, or even just talking about them, are something that a single human dedicates their entire life, their entire being, to pursuing. These were the two main lessons.

Jerzy Skolimowski, the foreigner

I usually find that the beginnings of films are their best parts. In the best cases, we enter an entirely new world, whose internal dynamics have already been established before our arrival, and whose rules of operation we are not yet familiar with. This initial strangeness generally lasts a short while, but not in the case of Jerzy Skolimowski’s films. In these, not only is the initial understanding of what the film is about postponed, but when we finally manage to understand what is happening, this world is already shaping into something else.

His plots start from realistic scenarios, although sometimes unusual for a film, which are gradually taken to an extreme, stripped of their masks of civilization: a young man’s sexual awakening at his first job, at a public pool in London; a hairdresser in Brussels looking for a Porsche to compete in a rally; the renovation of a London house by illegal Polish immigrants; a wanderer arriving in a village in rural England; an Afghan fleeing from the American army in a Polish forest; the journey of a donkey through Europe. Soon, any semblance of normality that could exist in such premises is distorted by the characters’ restlessness – carnal desires, cravings for power and control, murderous instincts, pain, hunger, fear. The only constant in these stories seems to be their inconsistency, their continuous movement.

The filmmaker’s own trajectory, moreover, seems somewhat governed by the same principle of variability. Born in Poland, where he began his career, Skolimowski made films in Belgium, England, Germany, and the United States, as well as co-productions between two or more countries. Before starting to work in cinema, he was a boxer and a writer, and he occasionally works as an actor, in some of his own films and in Hollywood productions such as Mars Attacks! and The Avengers, or in independent productions like David Cronenberg’s Eastern Promises, where he plays a Russian immigrant, ex-KGB, in England.

Beyond the singularity of the plots of his films, each of them is also made in a distinct production context. Languages, countries, circumstances, and budgets change; however, we cannot say that Skolimowski adapts to each new environment. His films, as distinct as they may be, share precisely a sense of estrangement. Each experience is new and alien, whether it be entering a foreign country, a forest, or a swimming pool. Each new setting is also a potential stage for experimentation, each new object a possible prop. When his films stray from their realistic premises, it is primarily towards plastic inventions, crafted with lights, paints, glass, mirrors, water, always within the diegetic realm.

Moonlighting (1982)

Moonlighting (1982) perhaps exemplifies the filmmaker’s peculiar character better than any of his other productions. The strangeness of the film, set in England, is found in a situation that seems initially banal: the characters’ lack of understanding of English. Four Poles go to London to work on a house construction project, without work visas. Nowak (Jeremy Irons), as the only one among them who speaks a little English, becomes a kind of leader; in the land of the blind, the one-eyed man is king. It is from this advantage of the character that the plot will unfold.

Given the illegal status of their stay and the fact that, during it, Poland enters a period of martial law, Nowak’s initial everyday control over the other men quickly takes on authoritarian proportions. He keeps the other three isolated in the house and ignorant of the unstable situation in their home country. Nowak becomes a sort of manipulative media, being the only communication link for the others with the outside world, deciding what food, money, and information comes in and goes out. The situation reaches such an extreme that Nowak starts to control even his companions’ time, changing the clock’s hours, reducing their sleep time, and lying to them to finish the construction work quickly.

Interestingly, the protagonist does not use this power for his own gain; on the contrary, everything he does seems to be aimed at maintaining an illusion of normality within the house. He has a job to do and he won’t interrupt it, even if his country no longer exists, even if there is no reason to return, that is his only purpose. To maintain appearances within this isolated system, Nowak will put himself in absurd situations outside the house. When the money their employer gave them begins to run out, for instance, he creates a complex operation to steal food from the supermarket. We follow these events alongside the protagonist’s voice-over, with his direct narration, which, although subjective, only reinforces the objective nature of his actions and plunges the viewer even more deeply into this delimited world.

The four Poles are constantly seeking solutions to their problems, always concrete: while Nowak ventures into the streets looking for ways to take the double amount of food from the supermarket without the manager noticing, his companions destroy and rebuild the entire house, so that the setting, like the narrative, is in constant transformation. The first thing the men do when they arrive at the house is to reuse a beer can as a pot, already indicating that everything here will be reused. Skolimowski will renew the narrative in the same economic logic, with the same elements already in play, rearranging them like a Rubik’s Cube. At the end of the film, Nowak uses the same technique he developed to steal from the supermarket – hiding goods somewhere in the store to come back for them later, pretending they were his – to steal a scarf, the only item he takes for personal use throughout the film.

These issues are not small anecdotes in the characters’ trajectory, minor situations in the face of the larger narrative; as in Hollywood’s action or comedy movies, they consist of the core of the film, what drives the intricate plot forward. In both cases, the story itself matters less than how its characters deal with elements on the scene. The difference lies mainly in the nature of the limitations in Skolimowski’s film, which are not spectacular adversities like terrorists or thieves, but rather time and money. Interestingly, despite being more realistic, these adversities are more abstract than the personified enemies of Hollywood films, as they cannot be directly confronted. Also abstract, in a way, is the spatial limitation in Moonlighting: there is nothing physically preventing the characters from knowing the rest of London or even returning to Poland, what limits them are the laws (the fact that they are in the country without a visa, the martial law in their home country) and the foreign language.

It is through this unique mixture of realism and absurdity that Skolimowski’s work also approaches Kafka’s literature, which, in the words of Gunther Anders, “disrupts the apparently normal appearance of our crazy world to make its madness visible. However, it manipulates this crazy appearance as something very normal and, with that, even describes the crazy fact that the crazy world is considered normal.” [1] In a similar manner to Nowak, Gregor Samsa is more concerned with missing work and more preoccupied with the difficulties of getting out of bed with his new body than with the fact that he has become a monstrous insect. Skolimowski’s viewer, like Kafka’s reader, is inserted into a strange world without explanations, as are often the characters of both, although they simply deal with the consequences of this world more than question it [2].

Le Départ (1967)

Skolimowski’s characters, in general, have a single goal that borders on obsession, and they will do anything to achieve it. In this pursuit, the most absurd – and at times unnecessary – actions are undertaken. While initially part of a narrative simplification that reduces the plot to a single vector, this ultimately leads to an opening for different and unlikely possibilities of continuity. Wherever the characters go, whatever situation they find themselves in, the environment comes into play as much as they do; everything blends together, the film is moldable material.

His films usually feature protagonists whom we follow throughout their entire duration, who seem more submissive to the whims around them than to have any power of transformation. EO‘s donkey (2022) may be the most emblematic example in this case, being entirely subject to humans, given the submissive condition of the animal [3]. However, the system is not rigid, and there are characters who seem to have more autonomy, such as Jean-Pierre Léaud in Le Départ (1967).

While Moonlighting works from the material restrictions of the characters in a fixed setting, albeit in constant mutation, in Le Départ we seem to be facing an animated cartoon, with Léaud jumping from corner to corner of Brussels like the Road Runner. What motivates him, after all, is also a limitation, of the same order as the later film: money. But his ends and, mainly, his means, are very different. Léaud’s character Marc, a hairdresser, is in search of a Porsche to compete in a race, and will try to get it in unusual, humorous ways, accompanied by a young woman he meets along the way.

Unfolding in time, after all, and not just in space, it is the film that is in constant mutation, in constant movement. This movement is peculiar, not necessarily rectilinear. The characters bounce around the city while the plot is also shaped in an organic, malleable, random way. A mirror breaks amid the couple’s playfulness, but in the same shot we see it being reconstructed in a rewind, as if nothing had happened. Later, it is even sold whole in a used items store. In the real world, this glass indeed broke, but in Skolimowski’s world, even time can be molded. This is not a filmmaker concerned with recording reality, but with sculpting his own.

The Shout (1978)

The story of The Shout (1978), adapted from a tale by Robert Graves, begins to unfold during a cricket match in a mental institution, and our impression is that everything here is related in a intricate and autonomous way, much like in the game. Patients and staff play side by side, just as madness seems to walk hand in hand with sanity in the story of the shout that gives the film its title, narrated by one of the patients, Crossley (Alan Bates). Given his condition of insanity, he is evidently an unreliable narrator, casting doubt on the truthfulness of the entire narrative to follow; he himself starts the account by saying that the story is always the same, even though he tells it in “different ways, changes the order of events, varies the moments of climax.” He does this, he continues, “because he likes to keep it alive,” a procedure that resembles Skolimowski’s own, who also seems to stir his plots with the same intent.

The foreigner in the story is Crossley himself, a wanderer from Australia, who invades the life of a couple in rural England, Rachel (Suzannah York) and Anthony Fielding (John Hurt). Anthony spends most of his time in his studio, where he creates experimental music by recording distorted sounds of different combinations of objects; rolling marbles in a tray of water, drawing a violin bow across a torn aluminum can, or lighting a cigarette very close to the microphone. Just as the beer can is transformed into a pot in Moonlighting, the marble, the violin bow, and the other objects that accompany them are transformed into musical instruments. When Crossley arrives in town and later at the couple’s house, he claims to have learned from an Aboriginal shaman a powerful shout, capable of killing, among other spells. He even tells Anthony that his music is nothing compared to the shout, which prompts Anthony to ask to hear it.

The two go to an isolated spot amidst dunes surrounded by the sea, where Crossley finally shouts, a sound that comes as a graft, difficult to describe; high-pitched and intense, like many voices screaming at once or, still, assuming that it was made in a similar way to Anthony’s experiments, it could be the noise of some kind of air suction device. The unreal aspect of the shout becomes more interesting precisely because we have witnessed the creation of unusual sounds beforehand, establishing a precedent. The sound representing the shout certainly has a fantastic quality, since its true source is omitted and it is attributed to Alan Bates’s character, but it is made of the same material as the sounds produced by ordinary objects. It stands out from the premise of reality assumed in the film up to that point, but this premise was already far from a perfectly flat surface; it already had its undulations.

Proving that it indeed has supernatural powers, the shout leaves Anthony catatonic. Returning to the house, Crossley seduces Rachel, apparently also in a magical way, stealing a clasp from her sandal, leaving her entirely submissive to him, in an almost savage manner. At one point, she walks naked, on all fours, behind Crossley, her body configuring itself very similarly to Francis Bacon’s painting Paralytic Child (1961) – a painter in whose work shouting was a recurring theme – from which Anthony has a print in his studio. When this happens, the image appears in black and white for a second, as if to mark such resemblance. To break the spells, Anthony must smash a stone that appears in his hands in the dunes, after the shout, an object that supposedly contains Crossley’s soul. Small clues like these seem planted everywhere, suggesting that magic may not be restricted to the figure of the wanderer but may be spread across elements that were already there before his arrival, or even, as Crossley himself suggests before starting his account, that the pieces are shuffled, implying that linearity is not so important in this story.

The narrative of The Shout is indeed fantastic, unlike Skolimowski’s other films, but his way of working it is not very different from the rest. Crossley’s madness or shamanism are just components of a larger, complex, and hermetic game, where everything seems to be related, everything seems to be alive, in a secret and mysterious functioning: cricket, the madmen, Anthony’s music, the landscape of dunes, the deep shout. Reality, again, is not fixed but composed of this mixture of strange and normal elements, sometimes orchestrated and controlled like in Anthony’s sound experiments, sometimes released with disruptive force in Crossley’s shout and in Bacon’s paintings.

Deep End (1970)

Skolimowski’s material crafting perhaps appears more emphatically in Deep End (1970). Already in the credits, we have an almost abstract mixture of elements seen up close: a drop of blood dripping gives way to red pipes and gears, through which the camera wanders until it reaches a metallic surface, where the face of a boy is reflected, finally covered by a hand dirty with blood. It cuts to a bicycle being ridden by the boy, Mike (John Moulder-Brown). He is going to his first day of work at a public bathhouse and swimming pool, where he will fall in love with another employee, a slightly older young woman, Susan (Jane Asher).

Horror and beauty will walk together in this journey of the protagonist’s sexual discovery, that culminates in murder. The bathhouse is, at the same time, a place of sensuality and disgust, where all boundaries blur. The nature of Mike’s work soon reveals itself to be ambiguous when Susan suggests that he should offer sexual services to their clients. These clients, much older than Mike and Susan, also seem to have no problem flirting with young people. A middle ground, neither entirely in the water nor out, like a suitable habitat for the metamorphosis from tadpole to frog, the bathhouse marks the passage from boy to man or young woman to woman. There, both characters will learn about the ways of the world at its most visceral level, where the world of sex is inseparable from the world of work. While Mike nurtures a platonic love for Susan, she betrays her fiancé with an older and married swimming instructor who teaches teenagers in the pool; both Mike and Susan seem to be at the bottom of the food chain, submissive to their elders in every sense.

The oscillation in Deep End mainly occurs in the relationship between the two characters, ranging from playfulness and flirting to rejection (on Susan’s part). Mike’s motivation is not as defined as the monetary goals of other Skolimowski’s characters but is marked by the inherent vagueness of desire: he wants Susan, blindly. The obstacles faced by the protagonist here are everything that threatens this desire, Susan’s boyfriends, her contempt, or even anything that tarnishes her image. When he goes out one night to find her, he comes across a life-size cardboard poster of Susan naked at the entrance of a strip club. Not only does Mike steal the poster, but he covers the image with a coat while carrying the object on the subway, where he follows Susan and questions her about the figure, incredulous.

The final confrontation between the two could not happen anywhere else but inside the swimming pool, in a scene that we will realize then takes place just before the opening credits of the film. They end up there after grappling in a snowy park, where Jane Asher’s character realizes she has lost her engagement ring. The two decide to try to find the ring in an inventive way, tracing a circle around where they grappled and collecting all the snow from there, depositing it in a bag. They take this bag full of snow into the empty pool, where they set up a complicated operation to find the ring: they use the heat from a lamp to heat a kettle with water, melting the dirty snow slowly inside Susan’s pantyhose, which serves as a sieve. The sequence as a whole, if not tied to a narrative context, would closely resemble what was being done in the art scene of the same period when conceptual art, performance, and land art emerged and thrived.

For example, we can consider the work of Robert Smithson, the father of land art, who in the 1970s essentially assumed two aspects: there were his interventions in the world, his famous land arts, and the fragments of the world he brought into the museum. In this second case are included his non-sites, in which he arranged earth and stones taken from landfill sites in the museum – accompanied by the record of this transposition process, displacement maps, photos of the sites, etc. This earth and stones were sometimes arranged in isolated mounds, sometimes accompanied by mirrors that expanded and confused their dimensions, sometimes inside delimited containers, in the shape of shelves or spacecrafts – despite dealing with such concrete and earthly elements, Smithson always had a penchant for science fiction.

Robert Smithson, Non-site (Franklin, New Jersey), 1968
Robert Smithson, Non-site, Line of wreckage (Bayonne, New Jersey), 1968

Parallel to his artistic production, Smithson wrote essays about his practice, where a central theme was that of entropy. Commonly associated with an idea of disorder or chaos, entropy is somewhat more complex. Simplifying greatly, it is more a measure of randomness, of possible configurations, than randomness itself. One of the most common examples to explain it would be precisely ice melting: when water is frozen, its molecules are more organized and rigid; once exposed to heat, transitioning from the solid to the liquid state, the level of disorder of these molecules (entropy) increases until it reaches its maximum value, completely melting. In this state, the system is again in equilibrium, but if the water is exposed to more heat and begins to transition to its gaseous state, the level of disorder of the molecules will increase again.

The situation exemplifies the second law of thermodynamics, which states that “the entropy of any isolated thermodynamic system tends to increase over time, approaching a maximum value.” Entropy is usually associated, therefore, with the amount of energy lost in a process that generates heat – in the operation of a machine, for example, part of the energy spent will necessarily be lost when the machine heats up, not being converted into another usable form of energy.

The ice sequence in Deep End, which could also be a non-site – the swimming pool, after all, is very similar to “white cube” conception of the modern museum – can serve as a metaphor for Skolimowski’s work in general. His films are like closed systems (the public swimming pool, the work at the house, the search for a car to compete in the rally) in which molecules move in disorder (Jean-Pierre Léaud in Le Départ is a particularly agitated molecule) until they reach their maximum level (the scream in The Shout might be the most appropriate example here), and then settle down again. As in entropy, a level of energy is necessarily lost in this process. Although the characters act in pursuit of specific goals (no matter how foolish they may seem to us), the effort they make for it is notably greater than necessary; they will zigzag when they could walk in a straight line. You might be able to transform ice from a solid to a liquid state, but it is impossible to separate it from the earth, clean it, it’s all dirty and mixed up, molecules in motion and disorder.

After finding the ring, Mike puts it on his tongue and gets naked, inviting Susan to also undress to retrieve the object. It is implied then that they will begin intercourse, but the boy fails somehow: by the expression he makes, he reached his peak of energy too quickly. Susan tries to leave, and he tries to stop her, as the pool begins to fill up. Mike then pushes the heavy iron lamp towards Susan, who gradually falls dead into the water. The movement of the lamp also knocks over buckets of red paint. The red drop in the credits was then paint, not blood, but that matters little here, where both are, like the sounds in The Shout, made of the same filmic material. Susan’s lifeless body, Mike embracing it, blood, red paint, clothes, kettle, everything floats together in the pool.

Paula Mermelstein Costa

Notes:

[1]  CARONE, Modesto. Introdução. In: KAFKA, Franz. Essencial Franz Kafka. Penguin-Companhia, 2011. p.13.

[2] “Kafka, for wiping the slate clean of artistic and psychological conventions and inventing a narrator equal to his characters: the unconscious or unwitting narrator, who knows as much as the character and the reader, that is, nothing or almost nothing, which leads them, through a strictly literary mediation, to the alienated universe in which we all live.” [Ibid, pp.8-9]

[3] I didn’t delve into the film here as I have already written about it in another text, in a past edition of the magazine, and for the Talent Press Rio in 2022: https://www.talentpress.org/bt/talentpress/v/do-mules-dream-of-electric-mules

Pacto (nada) sinistro

Um Crime Perfeito (Andrew Davis, 1998) é uma refilmagem de Disque M para Matar (1954), de Hitchcock. Esse thriller quase anônimo é estrelado por Michael Douglas, Gwyneth Paltrow e Viggo Mortensen. Embora tenha sido lançado no mesmo ano que o remake homônimo de Psicose (1960), suas premissas e termos não poderiam estar mais distantes do projeto de Gus Van Sant. Filmes hitchcockianos como Um Crime Perfeito, O Suspeito da Rua Arlington (1999), Revelação (2000) ou Plano de Vôo (2005) – para me restringir ao período em questão – nos fazem pensar nas “máquinas anônimas” cujo funcionamento o crítico Nicolas Saada entreviu na série James Bond: filmes sem identidade que produzem “um número espantoso de ideias de cinema, sem efeito de assinatura, sem a sombra de uma ‘personalidade’ no comando”. Estamos distantes, nesse caso, do exibicionismo autoral de outros hitchcockianos como De Palma, Verhoeven ou Fincher. 

A narrativa de Um Crime Perfeito, substancialmente diferente de Disque M para Matar, mantém, contudo, uma estrutura de base: a do marido que planeja o assassinato da esposa depois de descobrir que ela está traindo-o com outro homem. Entre as modificações feitas em relação ao filme original, a mais sensível é a que diz respeito ao amante. Se no filme de Hitchcock este cumpria a função de investigador que juntava as peças do quebra-cabeças e salvava a personagem de Grace Kelly da pena de morte (tratava-se, na ocasião, de um escritor de histórias policiais), aqui ele é o próprio vetor que, chantageado pelo marido da protagonista, deve levar a cabo o assassinato da mulher. Assim, o marido Steven (Michael Douglas) firma um pacto com o amante David (Viggo Mortensen), que é encarregado da tarefa de matar Emily (Gwyneth Paltrow). 

O deslocamento não é tão simples. O amante no filme de Hitchcock, interpretado por Robert Cummings, era um escritor bem-sucedido. Já o assassino contratado, interpretado por Anthony Swann, era um trapaceiro que seduzia mulheres ricas para roubar seu dinheiro. Em Um Crime Perfeito, a personagem de Mortensen amalgama essas duas: é ao mesmo tempo amante e impostor. É com essa informação em mãos – a de que se trata de um farsante – que Steven, o marido, chantageia David. Mais do que uma oposição moral, o que separa as duas personagens é, mais fundamentalmente, a classe social. Um Crime Perfeito, diferente de seu precursor, faz uso amplo de externas (Disque M para Matar, adaptado de uma peça de teatro, trabalhava com códigos teatrais e utilizava um apartamento como locação principal). São essas externas que permitem ao filme solidificar a oposição entre o apartamento de luxo do casal principal – Steven é investidor de Wall Street e Emily, herdeira – e o ateliê do amante, que trabalha como pintor no bairro popular do Brooklyn. 

O rebaixamento de classe social do amante tem consequências mais e menos óbvias. Por um lado, Emily parece projetar no amante não mais do que a possibilidade de satisfazer um desejo perverso ou de mitigar uma certa má consciência de elite. Tanto os planos da personagem no metrô, a caminho do ateliê, quanto o presente que ela dá a David na sequência (uma cafeteira que, nas palavras dela, traz “um pouco de civilização” para o espaço) testemunham dessa má consciência ao mesmo tempo parasitária e narcísica (“David só se interessa por pintura e por mim”, confidencia Emily a uma amiga no início do filme). Pelo lado do marido, Steven também instrumentaliza o amante pobre, chantageando-o para cometer o assassinato da esposa. O filme parece insinuar, em um primeiro momento, que as classes populares são diretamente afetadas pelas crises conjugais dos ricos – o que não significa inocentar David. 

Ainda não arranhamos, entretanto, o essencial da modificação do estatuto do amante. Para começar a cercá-la, é preciso esmiuçar os termos da crise conjugal. Em Disque M para Matar, o marido interpretado por Ray Milland agia por vingança (pelo adultério) e por cobiça (pela herança da esposa). Steven age pelas mesmas razões, mas a elas se soma um motivo incontornável: enquanto não encontrávamos, no filme de Hitchcock, um elemento que apontasse para uma crise financeira do marido, aqui é explicitado que os negócios de Steven em Wall Street estão em baixa. Poderíamos concluir, de forma pragmática, que o colapso econômico do marido é um fator decisivo para sua decisão de assassinar a esposa herdeira (trata-se de uma tentativa de reaver o dinheiro perdido), mas o filme nos sugere que a relação entre as duas crises – financeira e conjugal – é mais nuançada. 

No início do filme, uma montagem paralela alterna dois espaços e duas situações: Steven em seu escritório, lidando com o desabamento de seu império econômico, e Emily e David no ateliê, transando entre as obras de arte. Se é característico da montagem paralela a convergência entre os dois pólos de tensão, o mesmo se verifica aqui. No desfecho da sequência, Steven liga para o ateliê e deixa um recado na secretária eletrônica, que é ouvido pelos amantes na cama (voltarei a essa configuração triangular). Ecoando uma na outra, as cenas em paralelo começam a definir os contornos da crise – a verdadeira crise – de Steven. Comportando-se como um espécime perfeito da linhagem hitchcockiana, o marido interpretado por Michael Douglas reage diante da ruína de seu papel masculino na ordem patriarcal. 

As palavras de Tania Modleski sobre Um Corpo que Cai – filme que consiste na “crônica das dificuldades de Scottie para reafirmar uma virilidade perdida na sequência de seu fracasso como representante da lei” – descrevem com precisão a série de personagens hitchcockianos assombrados pelo fantasma da castração feminina. Steven pertence a essa série, e seu plano desde o início do filme responde à tentativa de reconquistar seu lugar no patriarcado, isto é, de recuperar um mínimo simulacro de controle na ordem simbólica. Que a personagem seja interpretada por Michael Douglas, que nas décadas de 1980 e 1990 constantemente repercutiu esse papel – em filmes como Atração Fatal (1987), Instinto Selvagem (1992), Assédio Sexual (1994) ou mesmo Vidas em Jogo (1997) – não é um detalhe qualquer. Um Crime Perfeito parece uma continuidade lógica na filmografia do ator: trata-se, aqui, da tentativa de recobrar uma posição simbólica masculina seguidamente ameaçada pelas mulheres. 

As justificativas para a crise de Steven são rastreáveis. Se a montagem paralela citada acima é um momento fundamental do filme, é porque ela explicita a relação entre os declínios conjugal e econômico. Pois Steven não ressente apenas o fato de estar sendo traído – ele ressente, mais profundamente, a queda de sua posição simbólica de provedor. Se ele arquiteta um plano para assassinar a esposa, não é tanto porque ela está somente transando com outro homem, mas porque a recessão econômica de seus negócios o levaria a ser sustentado pela mulher. É preferível à personagem masculina planejar o assassinato da esposa para adquirir a herança do que arrogar o papel – historicamente feminino – de figura socorrida financeiramente pelo cônjugue. David, nesse sentido, é como um espelho do emasculado Steven, o fantasma de um devir, pois o que o marido parece vislumbrar no amante, em última instância, é seu destino de homem pobre usufruindo o dinheiro da mulher rica. 

A retomada da posição simbólica de Steven não é uma operação restrita ao assassinato. Ao longo da narrativa, o filme destila pequenos gestos que proclamam esse trabalho perverso de recuperação de um simulacro de domínio. O vestido que o marido escolhe para a esposa, as pequenas armadilhas plantadas, as surpresas e sustos recorrentes, entre outros, relacionam-se com essa tentativa de simultaneamente minar o controle da esposa e readquirir uma ilusão de poder. Entre essas estratégias, destaca-se com mais proeminência aquela do gaslighting, que atende à agenda de confundir, desorientar e manipular a mulher. Se o gaslighting é uma violenta interrupção do acesso da mulher à linguagem (as palavras são de Hélène Frappat), começamos a entender a insistência do filme em diálogos ambíguos e jogos de duplo sentido. Em muitos casos, o sentido imediato de uma fala é plenamente acessado pelas personagens, mas por trás dela esconde-se um sentido oculto (ou antes uma polissemia) que é restrita aos homens. Quando Steven conta a Emily, por exemplo, que visitou o ateliê do pintor e lhe “fez uma oferta”, a esposa assume que ele está falando de um quadro. A oferta, como sabemos, dizia respeito ao seu assassinato. 

Manter a mulher à margem do conteúdo polissêmico da linguagem torna-se, para o homem, uma ferramenta para controlá-la. Na segunda metade do filme, vemos Emily devolver certas linhas de diálogo a Steven, revertendo seu sentido e confrontando-o com suas próprias palavras. A dinâmica assemelha-se ao desfecho de Gaslight (1944), de George Cukor, onde Ingrid Bergman se recusava a libertar o marido – que durante a narrativa quis fazê-la acreditar que estava louca – sob a desculpa de que havia “enlouquecido”. A postura de Emily diante do marido encontra ressonância com a crescente da personagem na narrativa: é nesse momento que ela começa a seguir o dinheiro, a assumir a posição de investigadora. 

Em Disque M para Matar, essa posição era ocupada pelo inspetor interpretado por John Williams. Aqui, a função do detetive (David Suchet) é outra: no drama da linguagem encenado pelo filme, ele é o único que consegue estabelecer uma conexão com a vítima, lançando mão de uma linguagem secreta, privada, restrita. Emily, que trabalha como diplomata, sabe falar a língua do detetive de descendência árabe. A primeira troca de palavras em outra língua – um diálogo solidário a respeito da família do detetive – acontece na sala do interrogatório, local onde Steven, sentado ao lado de Emily, insiste em responder as perguntas por ela. As falas insistentemente talhadas pelo marido são contrapostas, no campo simbólico, à conversa íntima entre Emily e o detetive, inacessível aos demais participantes do interrogatório. Essa conexão inicial é fundamental, pois dali em diante será a mulher quem tomará as rédeas da investigação. 

O filme não pode, entretanto, permitir à personagem feminina o pleno usufruto de sua agência. Há algo de perturbador na cena em que Emily, aparentemente ciente do fato de que Steven foi o responsável pelo plano que quase a matou, confronta o marido no escritório em Wall Street. O início da cena segue a lógica das inversões irônicas: em vez de ser surpreendida por Steven, é Emily quem surpreende a personagem masculina; em vez de ser mantida à margem da polissemia da linguagem, ela retorna contra o marido linhas de diálogo que ele já havia usado na narrativa. Vemos germinar a semente de uma subversão. O que segue, entretanto, é a regressão da personagem feminina à sua posição inicial: Steven volta a manipulá-la e destituí-la de seu poder, desta vez apelando para a culpa de Emily em relação ao adultério. À mulher não é outorgado o direito de desmascarar seu algoz: será mais razoável, perante a misoginia que preside a narrativa, que a descoberta do crime seja efetivada em uma cena posterior, que enfatiza não a justeza da percepção feminina, mas o erro masculino. Depois de assassinar David, Steven retorna para a casa levando consigo uma caixa de sapatos com dinheiro e uma gravação incriminadora. Ele guarda o dinheiro e a gravação no cofre, mas comete o equívoco de deixar a caixa de sapatos à vista. 

O desfecho não é totalmente desprovido de interesse. Enquanto o marido está no banho, Emily percebe a caixa vazia e intui que seu antigo conteúdo está depositado no cofre – do qual ela sabe a combinação. Aqui, o filme espelha uma cena anterior, na qual Steven havia surpreendido a esposa no horário de almoço. Sabendo que ela tinha um encontro marcado com David, e que ela tentaria encontrar formas de ligar para o amante avisando do almoço surpresa com o marido, Steven deixa o celular em cima da mesa do restaurante enquanto se dirige a outra mesa para cumprimentar alguns amigos. A cena montada por Steven se torna uma espécie de armadilha, uma cifra do gaslighting. O olhar de Emily em direção ao celular, o impulso – não efetivado – de pegá-lo, ressoa no olhar da personagem em direção à caixa de sapatos. Desta vez, ceder ao impulso significa acessar a verdade. 

Há ainda outro espelhamento de interesse. Descrevi, acima, a montagem paralela que opunha Steven no escritório e os amantes no ateliê. Ali, a voz de Steven invadia o espaço dos amantes através da secretária eletrônica. Mais adiante, vemos uma triangulação semelhante na cena da tentativa de assassinato, pois nela o marido é novamente posicionado ao telefone. Em ambos os casos, o marido faz (literalmente) a ligação entre um espaço e outro, uma situação e outra. O que difere as duas cenas é, evidentemente, o conteúdo da ação: se no primeiro caso os amantes transam, no segundo eles tentam matar um ao outro. (Não importa, nesse caso, que o agressor não seja David, pois só descobrimos essa informação posteriormente). Na medida em que uma cena espelha a outra, sugere-se uma ligação sutil entre o sexo e a morte – tema central não somente em Disque M para Matar, mas na obra de Hitchcock como um todo. 

Se o espelhamento surge como recurso formal – sobretudo pela montagem e pelo roteiro –, ele também aparece como recurso cênico. Em um plano central do filme, vemos Steven surgir por trás de Emily no closet do apartamento. Seu reflexo no espelho, entretanto, é duplicado, insinuando uma multiplicação da figura masculina. Podemos ler essa duplicação de duas formas. Por um lado, ela denota a instabilidade da identidade masculina da personagem (cindido entre as crises já citadas); por outro, ela sugere que Steven não age sozinho na economia patriarcal. O segundo reflexo, o outro Steven, é principalmente David, mas também outro homem, qualquer homem. Não coincidentemente, o roteiro do filme posiciona ainda um terceiro elemento masculino na equação, que cumpre o papel do invasor. Multiplicam-se os agressores e as origens da ameaça. A “transferência de culpa” (para empregar um termo em voga na literatura sobre Hitchcock) para o amante não é insignificante. Fazer dele um cúmplice do pacto masculino – acordo tácito de manutenção da ordem patriarcal – é um dos gestos mais interessantes da máquina anônima chamada Um Crime Perfeito

Luiz Fernando Coutinho

A (not so) Perfect Murder

A Perfect Murder (Andrew Davis, 1998) is a remake of Hitchcock’s Dial M for Murder (1954). This almost anonymous thriller stars Michael Douglas, Gwyneth Paltrow and Viggo Mortensen. Although it was released in the same year as the homonymous remake of Psycho (1960), its premises and terms could not be further from Gus Van Sant’s project. Hitchcockian films such as The Perfect Murder, Arlington Road (1999), What Lies Beneath (2000) or Flightplan (2005) – to restrict myself to the period in question – make us think of the “anonymous machines” whose operation the critic Nicolas Saada glimpsed in the James Bond series: films without identity that produce “an astonishing number of cinema ideas, without signature effect, without the shadow of a ‘personality’ in charge”. We are far, in this case, from the authorial exhibitionism of other Hitchcockians such as De Palma, Verhoeven or Fincher.

The narrative of A Perfect Murder, substantially different from Dial M for Murder, maintains, however, a basic structure: that of the husband who plans the murder of his wife after discovering that she is cheating on him with another man. Among the changes made in relation to the original film, the most sensitive is the one that concerns the lover. If in Hitchcock’s film he played the role of an investigator who put together the pieces of the puzzle and saved the character of Grace Kelly from the death penalty (he was, there, a writer of detective stories), here he is the vector itself who, blackmailed by the protagonist’s husband, must carry out the woman’s murder. Thus, the husband Steven (Michael Douglas) forms a pact with the lover David (Viggo Mortensen), who is tasked with killing Emily (Gwyneth Paltrow).

The displacement is not that simple. The lover in Hitchcock’s film, played by Robert Cummings, was a successful writer. The hired killer, played by Anthony Swann, was a trickster who seduced rich women to steal their money. In A Perfect Murder, Mortensen’s character amalgamates these two: he is both lover and impostor. It is with this information in hand – that he is a scammer – that Steven, the husband, blackmails David. More than a moral opposition, what separates the two characters is, more fundamentally, social class. A Perfect Crime, unlike its precursor, makes extensive use of exteriors (Dial M for Murder, adapted from a play, worked with theatrical codes and used an apartment as the main location). It is these exteriors that allow the film to solidify the opposition between the main couple’s luxury apartment – Steven is a Wall Street investor and Emily, an heiress – and the lover’s studio, who works as a painter in the working-class neighborhood of Brooklyn.

The lowering of the lover’s social class has more and less obvious consequences. On the one hand, Emily seems to project onto her lover nothing more than the possibility of satisfying a perverse desire or alleviating a certain bad elite conscience. Both the shots of her character on the subway, on the way to the studio, and the gift she gives David in the sequence (a coffee maker that, in her words, brings “a little civilization” to the space) testify to this bad conscience at once parasitic and narcissistic (“David is only interested in painting and me”, Emily confides to a friend at the beginning of the film). On his husband’s side, Steven also instrumentalizes the poor lover, blackmailing him into committing his wife’s murder. The film seems to insinuate, at first, that the popular classes are directly affected by the marital crises of the rich – which does not mean to exonerate David.

However, we have not yet scratched the surface of the essential aspects of changing the lover’s status. To begin to surround it, it is necessary to scrutinize the terms of the marital crisis. In Dial M for Murder, the husband played by Ray Milland acted out of revenge (for adultery) and greed (for his wife’s inheritance). Steven acts for the same reasons, but in addition to them is an unavoidable reason: while we did not find, in Hitchcock’s film, an element that pointed to a financial crisis for her husband, here it is made clear that Steven’s business on Wall Street is in decline. We could conclude, pragmatically, that the husband’s economic collapse is a decisive factor in his decision to murder his heiress wife (it is an attempt to recover the lost money), but the film suggests that the relationship between the two crises – financial and marital – are more nuanced.

At the beginning of the film, a parallel montage alternates between two spaces and two situations: Steven in his office, dealing with the collapse of his economic empire, and Emily and David in the studio, having sex among works of art. If the convergence between the two tension poles is characteristic of parallel montage, the same is true here. At the end of the sequence, Steven calls the studio and leaves a message on the answering machine, which is heard by the lovers in bed (I will return to this triangular configuration). Echoing one another, the parallel scenes begin to define the contours of Steven’s crisis – the real crisis. Behaving like a perfect specimen of the Hitchcockian lineage, the husband played by Michael Douglas reacts to the ruin of his masculine role in the patriarchal order.

Tania Modleski’s words about Vertigo – a film that consists of “the chronicle of Scottie’s difficulties in reaffirming a virility lost in the wake of his failure as a representative of the law” – accurately describe the series of Hitchcockian characters haunted by the specter of female castration. Steven belongs to this series, and his plan from the beginning of the film responds to the attempt to regain his place in the patriarchy, that is, to regain a minimum simulacrum of control in the symbolic order. That the character is played by Michael Douglas, who in the 1980s and 1990s constantly played this role – in films such as Fatal Attraction (1987), Basic Instinct (1992), Disclosure (1994) or even The Game (1997) – It’s not just any detail. A Perfect Crime seems like a logical continuity in the actor’s filmography: here, it is an attempt to recover a symbolic masculine position that is continuously threatened by women.

The justifications for Steven’s crisis are traceable. If the parallel montage mentioned above is a fundamental moment in the film, it is because it explains the relationship between marital and economic decline. For Steven doesn’t just resent being betrayed – he more deeply resents the fall from his symbolic position as provider. If he devises a plan to murder his wife, it is not so much because she is just having sex with another man, but because the economic recession of his business would lead him to be supported by his wife. It is preferable for the male character to plan the murder of his wife to acquire the inheritance than to assume the role – historically female – of a figure supported financially by his spouse. David, in this sense, is like a mirror of the emasculated Steven, the ghost of a future, because what the husband seems to glimpse in the lover, ultimately, is his destiny as a poor man enjoying the rich woman’s money.

The resumption of Steven’s symbolic position is not an operation restricted to murder. Throughout the narrative, the film distills small gestures that proclaim this perverse work of recovering a simulacrum of dominance. The dress that the husband chooses for his wife, the small traps planted, the recurring surprises and scares, among others, are related to this attempt to simultaneously undermine the wife’s control and regain an illusion of power. Among these strategies, gaslighting stands out most prominently, which serves the agenda of confusing, disorienting and manipulating women. If gaslighting is a violent interruption of a woman’s access to language (the words are by Hélène Frappat), we begin to understand the film’s insistence on ambiguous dialogue and double-entendre games. In many cases, the immediate meaning of a speech is fully accessed by the characters, but behind it lies a hidden meaning (or rather a polysemy) that is restricted to the men. When Steven tells Emily, for example, that he visited the painter’s studio and “made him an offer”, his wife assumes he is talking about a painting. The offer, as we know, concerned her murder.

Keeping women apart from the polysemic content of language becomes, for men, a tool to control them. In the second half of the film, we see Emily return certain lines of dialogue to Steven, reversing their meaning and confronting him with his own words. The dynamic is similar to the ending of Gaslight (1944), by George Cukor, where Ingrid Bergman refused to release her husband – who during the narrative wanted to make her believe she was crazy – under the excuse that she had “gone mad”. Emily’s stance towards her husband resonates with the character’s growth in the narrative: it is at this moment that she begins to follow the money, to take on the role of investigator.

In Dial M for Murder, this position was occupied by the inspector played by John Williams. Here, the role of the detective (David Suchet) is different: in the language drama staged by the film, he is the only one who manages to establish a connection with the victim, using a secret, private, restricted language. Emily, who works as a diplomat, knows how to speak the language of the detective of Arabic descent. The first exchange of words in another language – a sympathetic dialogue about the detective’s family – takes place in the interrogation room, where Steven, sitting next to Emily, insists on answering the questions for her. The lines insistently crafted by the husband are contrasted, in the symbolic field, with the intimate conversation between Emily and the detective, inaccessible to the other participants in the interrogation. This initial connection is fundamental, as from now on it will be the woman who will take the reins of the investigation.

The film cannot, however, allow the female character to fully enjoy her agency. There is something disturbing about the scene in which Emily, apparently aware of the fact that Steven was responsible for the plan that almost killed her, confronts her husband in his Wall Street office. The beginning of the scene follows the logic of ironic inversions: instead of being surprised by Steven, it is Emily who surprises the male character; Instead of being kept apart from the polysemy of language, she returns, against her husband, lines of dialogue that he had already used in the narrative. We see the seed of subversion germinate. What follows, however, is the regression of the female character to her initial position: Steven returns to manipulating her and stripping her of her power, this time appealing to Emily’s guilt regarding adultery. The woman is not granted the right to unmask her tormentor: it would be more reasonable, given the misogyny that presides over the narrative, for the discovery of the crime to take place in a later scene, which emphasizes not the fairness of the female perception, but the male error. After murdering David, Steven returns to the house taking with him a shoebox of money and an incriminating recording. He keeps the money and the recording in the safe, but makes the mistake of leaving the shoebox visible.

The outcome is not entirely devoid of interest. While her husband is in the shower, Emily notices the empty box and intuits that its old contents are deposited in the safe – to which she knows the combination. Here, the film mirrors a previous scene, in which Steven had surprised his wife at lunch. Knowing that she had an appointment with David, and that she would try to find ways to call her lover to let him know about the surprise lunch with her husband, Steven leaves his cell phone on the restaurant table while he goes to another table to greet some friends. The scene set up by Steven becomes a kind of trap, a gaslighting cipher. Emily’s look towards her cell phone, the impulse – not carried out – to pick it up, resonates in the character’s look towards the shoe box. This time, giving in to the impulse means accessing the truth.

There is yet another mirroring of interest. I described, above, the parallel montage that opposed Steven in the office and the lovers in the studio. There, Steven’s voice invaded the lovers’ space through the answering machine. Later, we see a similar triangulation in the attempted murder scene, as in it the husband is again positioned on the phone. In both cases, the husband (literally) makes the connection between one space and another, one situation and another. What differs between the two scenes is, obviously, the content of the action: if in the first case the lovers have sex, in the second they try to kill each other. (It doesn’t matter, in this case, that the aggressor is not David, as we only discover this information later). As one scene mirrors the other, a subtle connection is suggested between sex and death – a central theme not only in Dial M for Murder, but in Hitchcock’s work as a whole.

If mirroring appears as a formal resource – especially through editing and the script –, it also appears as a scenic resource. In a central shot of the film, we see Steven appear behind Emily in the apartment’s closet. His reflection in the mirror, however, is doubled, insinuating a multiplication of the male figure. We can read this duplication in two ways. On the one hand, it denotes the instability of the character’s masculine identity (torn between the aforementioned crises); on the other, it suggests that Steven does not act alone in the patriarchal economy. The second reflection, the other Steven, is mainly David, but also another man, any man. Not coincidentally, the film’s script also places a third male element in the equation, who plays the role of the invader. Aggressors and the origins of the threat are multiplying. The “shifting of blame” (to use a term in vogue in Hitchcock literature) to the lover is not insignificant. Making him an accomplice in the male pact – a tacit agreement to maintain the patriarchal order – is one of the most interesting gestures of the anonymous machine called A Perfect Crime.

Luiz Fernando Coutinho

Postscript: on artistic inspiration

Most of the comments, whether critical or not, regarding In Water (2023), are divided into highlighting the blur, either as a visual transposition of the blindness that has affected the director in recent years, or as a symbolic manifestation of the confusion its protagonist is going through. To a lesser extent, there is talk of pictorial inspiration, namely by Paul Cézanne and his figurations, of landscapes or still lifes, which often tend towards what can be considered an abstract representation.

Hong’s comparison with Cézanne is more interesting, because it sticks to an aesthetic effect and does not look for symbolic justifications. The mention of the painter, among other possible artists, is not by chance: he is, after all, the artist Hong always talks about, when citing his inspirations, but it is necessary to define how this influence occurs. It is worth mentioning here one of Hong’s phrases that justify the filmmaker’s rapprochement with the painter, about admiring the work routine of this other art: “If I could, I would film every day. I envy painters who can exercise their discipline in everyday life.” [1][2]

To a large extent, what Hong admires is, more than any individual painting, Cézanne’s perseverance and insistence in painting the same motifs, in composing variations, in experiencing daily work and “pure” painting, uninfluenced by great themes, without seeking to commercialize his work. Cézanne is an ideal model of artistic discipline, who made the search for a new way of representing nature one of the objectives of all his work. His brushstrokes did not seek the faithful and coherent representation of the Saint-Victoire Mountain or the forests surrounding it, but the expression of a pictorial mass, the exposure of a materiality and a latent energy in these landscapes, in which the forms seem to move, tending to overlap. His objective was not abstraction, but the most coherent representation possible, as faithful as possible to the perception of the motifs that served as its basis, aiming at a “permanent” representation of them, not just a superficial impression of their appearance.

Paul Cézanne, Mont Sainte-Victoire, 1902–04, oil on canvas, 73 x 91.9 cm (Philadelphia Museum of Art)

This aspect is evident in most of the films in which Hong works under complex structures, which undo and reconstruct the order of the narrated events, where layers of dreams and reality sometimes become inseparable. An influence, therefore, that goes much more through the level of intellectual interpretation of how to represent the elements of reality than through a pictorial manifestation on the screen, necessarily. It is above all about finding another way to represent reality, not through a direct and realistic route, but a deviation that captures at the same time its immediate materiality and what may lie behind it, a subtle balance between the concrete and the abstract. [3]

However, the comparison between the two weakens a possible relationship when based strictly on visual terms, as has been done, with a great disadvantage for Hong, who seems to have his films summarized in very unintriguing images. Not only because a frame is one fragment among thousands of his film, while Cézanne’s frame presents the work already finished, fully structured, but also because composition was never among Hong’s best qualities or interests. In all his films, to this day, Hong seeks a clear, frontal framing, free from obstacles in front of the central elements of the scene. The blur in In Water, it is true, breaks with this clarity, but it does not alter the other elements of the shot, nor the configuration of the film as a whole, which relies on the actors’ interpretation of the text and the sequentiality of the filmed scenes.

Hong does not work with the camera’s focus in relation to movement and depth of field, but as a flat and stable surface. The characters or objects do not come in or out of focus, nor does the degree of this blur appear varied, changing only according to the distance of the object from the camera. In the end, what Hong does remains a figurative record, illustrating a realistic narrative. Both in the content expressed throughout the duration of each shot, and in the articulation of shots throughout the film, what it does is nothing more than restore a continuity of events, which present this reality through a more prominent filter, which modifies the its appearance, but retains its general terms. In other words, Hong’s blur is not enough to make his conception of the image completely different, only because of a change in the value he attributes to it in the film. In Cézanne, the brushstroke is the painting; Hong’s film has not yet gone far enough for the shot to have this primordial aspect, as plastic expression: it still mainly serves to record the scene.

When making a film, positioning the camera and starting to record is a simple and mechanical operation, while the painter has to carry out all the brushstrokes, visually interpreting the space and translating this into a pictorial technique. One must start from the blank canvas and achieve this figuration in their own way, while for the other the figuration is already given a priori – even though their gesture may constitute a refusal of objectivity, as is the blurring of In Water. The differences are not restricted only to the means, but also to each person’s objectives: Cézanne wants to see the mountain, make it pulse, make the perception of its materiality more intense. The blur in Hong’s film, on the contrary, tries to dissolve the appearances of each thing, making its concreteness more rarefied. Hong also tries to work quickly, finishing a feature film in less than a week, without doing any reshoots; the opposite of Cézanne, an obsessive painter, capable of taking years to finish certain paintings, unsatisfied until he resolved the smallest details.

To immediately associate an inspiration with an influence and, consequently, the appearance of the painting and the frame, without questioning the particularities of each one, is to miss the opportunity to understand what really matters in the perception that one artist may have about another. It is important to highlight this issue when today, in any debate, prestigious names superficially known by the commenting public are freely evoked as figures of authority, regardless of the context of their work. The comparison serves as a compliment to the new object, not yet defined, but it not only reduces the understanding of the reference work but also prevents the search for a proper definition of this new work, still untouched.

Matheus Zenom

Notes:

[1] “L’artiste que j’admire le plus est Cézanne. Quand j’ai découvert ses peintures, alors que j’étais à l’université, j’ai cru en mourir. J’ai ressenti une intimité qui me touchait presque. Cela me semblait d’une perfection telle que j’avais le sentiment de n’avoir besoin de rien d’autre. Partout où je vais, je me rends dans les musées et je demande s’ils ont du Cézanne, auquel cas je m’arrête devant pour ne contempler que ça, tandis que les gens passent”. In an interview with Julien Gester, published at: https://www.liberation.fr/cinema/2016/02/16/hong-sang-soo-cela-pourrait-me-ressembler-mais-c-est-une-illusion_1433772/

[2] “Si je pouvais, je tournerais tous les jours. J’envie les peintres qui peuvent exercer leur discipline au quotidien”. In an interview with Samuel Douhaire, published in Télérama, on June 8, 2017. Available at: https://www.telerama.fr/cinema/la-methode-de-tournage-de-hong-sang-soo-je-m-adapte-a-la-meteo-et-je-laisse-les-idees-venir,159229.php

[3] “I saw this apple painting [The Plate of Apples] for the first time in an art museum. I was a student, so I had a free pass. I was standing there talking to myself, like, ‘This is enough. I don’t need anything more. It is still the greatest.’ I didn’t analyze it, but, naturally, I asked myself: why? Maybe his way of proportionalizing the abstract and the concrete is just right for me. I think that’s why, when I see his paintings, I never get bored. I can keep looking at them. They’re very fresh all the time.” In an interview with Dennis Lim, published in The New Yorker, on May 15, 2022. Available at: https://www.newyorker.com/culture/the-new-yorker-interview/hong-sangsoo-knows-if-youre-faking-it

Los tonos mayores (Ingrid Pokropek, 2023)

Este artigo foi escrito e publicado [em inglês] durante o programa Talent Press no Festival de Berlim, em fevereiro de 2024.

De certa forma, Los Tonos Mayores (2023) funciona como um estudo semiótico, mas conduzido por uma adolescente. O primeiro filme de longa-metragem de Ingrid Pokropek, parte do programa Generation Kplus do Berlinale, começa com Ana (Sofía Clausen) sentindo essa estranha frequência vinda da placa de metal que tem dentro do braço e repetindo os tons para sua amiga Lepa (Lina Ziccarello), que os transforma em música em seu teclado. Ana mora com seu pai (Pablo Seijo) nos arredores de Buenos Aires; sua mãe faleceu. O filme trata de explorar sinais ocultos, sejam as misteriosas vibrações vindas de dentro do braço da protagonista, ou os tipos mais terrenos de descobertas que ela experimenta como uma adolescente de quatorze anos.

Enquanto o pai de Ana começa a sair com uma ex-namorada sua, Lepa logo se envolve em seus primeiros relacionamentos românticos com um rapaz, ambos eventos que parecem afetar um pouco a protagonista. Ela ainda está muito envolvida nos quebra-cabeças lúdicos trazidos por sua placa de metal, que logo descobre ser pequena demais e terá que ser removida, quase como se fosse forçada a crescer.

Os sinais, que são primariamente traduzidos como zumbidos e música, ganham uma nova interpretação quando Ana conhece um jovem soldado (Santiago Ferreira), que os lê como código Morse. A partir de sequências de pontos e espaços, ele pode traduzi-los em palavras. Um novo gênero de perguntas surge ao interpretar o significado dessas palavras: elas indicam pontos de encontro? Coordenadas? Constelações? De quem são? Espiões? Aliens? Amantes? Poderiam ser mensagens do além? Quando uma das sequências de códigos diz “não me esqueça”, Ana se pergunta se poderia ser uma mensagem de sua mãe.

A beleza de Los tonos mayores está justamente nessas perguntas, que parecem se abrir cada vez mais, nunca se fixando em uma única resposta, mas também nunca se afastando muito da realidade. Por mais cheios de admiração que esses sinais sejam, as andanças de Ana pela cidade são muito mundanas. Essas muitas aberturas estão sempre associadas à perspectiva e aos arredores da protagonista; ela busca significados dentro de sua própria cidade a partir de palavras escritas em seu próprio idioma. Afinal, não devemos esquecer, essas mensagens vêm de dentro de seu próprio corpo. Esse movimento de dentro para fora também é refletido na trilha sonora do filme, composta por Gabriel Chwojnik, onde sons de ficção científica assustadores se transformam em notas mais emotivas; como uma aventura infantil, soam ao mesmo tempo misteriosos e nostálgicos.

As mensagens em si são invisíveis, e o filme se concentra em encontrar o máximo de manifestações físicas e imaginárias delas quanto possível: desde o sonho de Ana no qual as luzes dos vizinhos e ruas de seu bairro piscam alternadamente, até os diferentes locais na cidade que ela encontra através das palavras traduzidas pelo código Morse. Uma estátua de touro, um cinema, um café, um restaurante à beira do cais. Esses lugares aparentemente aleatórios por toda Buenos Aires, tornados importantes pelo contexto da história, também funcionam como uma espécie de coleção de lugares peculiares na cidade.

É nesse ponto que percebemos que a jornada de Ana compartilha muitas semelhanças com o processo criativo de um filme; o que estamos vendo na tela também é uma combinação de cenários e pessoas inicialmente arbitrárias, reunidas para fazer sentido por este tecido de ficção. Apesar da quantidade de significados sugeridos, ou até mesmo por causa disso, o tecido de Los tonos mayores é muito leve; há tantos significados atribuídos a esses sinais que percebemos mais claramente sua arbitrariedade. Em outras palavras, podemos ver a estátua do touro como um sinal nas mensagens de Ana ou apenas uma estátua de touro curiosa. É dessa maneira que o filme de Pokropek consegue ter o mesmo tipo de espírito aventureiro que sua protagonista, seguindo os sinais e vendo para onde eles nos levam.

Paula Mermelstein Costa

Ground control to major tones

This article was written and published during the Talent Press program in the Berlinale, in February 2024.

In a way, The Major Tones (Los Tonos Mayores, Argentina, 2023), runs like a semiotic study, but one that is run by a teenage girl. Ingrid Pokropek’s first feature film, part of the Generation Kplus program of the Berlinale, starts with Ana (Sofía Clausen) feeling this weird frequency coming from the metal plate she has inside her arm and repeating the tones to her friend Lepa (Lina Ziccarello), who turns it into music on her keyboard. Ana lives with her father (Pablo Seijo) in the outskirts of Buenos Aires; her mother has passed away. The film is about exploring hidden signs, being those the mysterious vibrations coming from inside the protagonist’s arm, or the more down-to-earth kind of discoveries she experiences as a fourteen-year-old girl.

While Ana’s father starts going out with an ex-girlfriend of his, Lepa soon gets entangled in her first romantic involvements with a boy, both events that seem to hit the protagonist a little hard. She is still very much involved in the ludic puzzles brought on by her metal plate, which she soon learns that is too small and will have to be taken off, almost as if she was forced to grow up.

The signs which are primarily translated as humming and music, gain a whole new interpretation when Ana meets a young soldier (Santiago Ferreira), who reads them as morse code. From sequences of dots and spaces, he can translate them into words. A whole new genre of questions emerges when interpreting the meaning of these words: do they indicate meeting points? Coordinates? Constellations? Who are they from? Spies? Aliens? Lovers? Could they be messages from the beyond? When one of the codes sequences reads “forget me not”, Ana wonders if it might be a message from her mother.

The beauty of The Major Tones is precisely in those questions, that seem to open more and more, never settling into one single answer but also, never getting too far from reality. As full of wonder as these signs are, Ana’s wanderings around the city are very mundane. These many openings are always very attached to the protagonist perspective and surroundings; she searches for meanings within her own city from words written in her own language. After all, we mustn’t forget, these messages are coming from inside her own body. This inside-outside movement is also reflected on the film’s soundtrack, composed by Gabriel Chwojnik, where eerie sci-fi sounds turn into more heartfelt notes; as a childlike adventure, they sound at once mysterious and nostalgic.

The messages themselves are invisible, and the movie is set on finding as many physical and imaginary manifestations of them as possible: from Ana’s dream where lights in her neighborhood keep flickering on and off, to the different spots in the city which she finds through the words translated by the morse code. A bull’s statue, a movie theatre, a cafe, a restaurant by the docks. These seemingly random places throughout Buenos Aires, made important by the story’s context, work also as a kind of collection of peculiar spots in the city.

It’s at this point that we perceive that Ana’s journey shares a lot of similarities to a film’s creative process; what we are seeing in the screen is also a combination of initially arbitrary sceneries and people, brought together to make sense by this quilt of fiction. Despite the amount of suggested meanings, or even because of it, the fabric of The Major Tones is very light; there are so many meanings attached to these signs that we perceive more clearly their arbitrariness. In other words, we can see the bull’s statue as a sign in Ana’s messages or merely a curious bull’s statue. It is in that manner that Pokropek’s film manages to have the same kind of adventurous spirit as her protagonist, following the signs and seeing where they take us.

Paula Mermelstein Costa

Processo de Edifício Master (2002)

Pouco mais de vinte anos nos separam de Edifício Master (2002), consolidado a muito tempo como um dos nossos últimos clássicos. Filmado inteiramente no tal edifício, seu projeto está baseado em entrevistar, ao longo de uma semana, alguns dos moradores dentro dos seus apartamentos, no tradicional bairro de Copacabana, conhecido como um lugar de complexidade social e aglomeração urbana. Master, o edifício, parece concentrá-lo e o filme de Eduardo Coutinho se dispõe a ver quais são as figuras presentes nesse lugar. Em comum entre todas essas pessoas, a priori, está apenas o fato de morarem no mesmo prédio.

A primeira entrevistada resume a história do Master, durante décadas um local de prostituição, mas que, nos anos recentes, após uma reforma administrativa, tornou-se um “prédio familiar”. A mulher nos conta que passou toda a sua vida no edifício, morando em 28 apartamentos diferentes, a maioria deles junto de sua mãe. Tudo por uma razão peculiar: decoravam muito bem os apartamentos em que moravam, chamando a atenção dos vizinhos que passam por eles admirados e, desejosos de se mudar para ali, sublocavam o cenário todo montado. Mãe e filha seguiam no mesmo prédio e faziam o mesmo com um novo espaço, sobrevivendo financeiramente das sucessivas trocas.

Master está localizado em um bairro nobre do Rio de Janeiro, a não mais de cem metros da praia, conforme diz a voz off de Coutinho a princípio, anunciando o projeto do filme: “Alugamos um apartamento no prédio por um mês. Com três equipes, filmamos a vida no prédio durante uma semana”. Seus moradores, em geral, pertencem a classe média e cada um dos seus apartamentos tem pouco menos de 50m², todos semelhantes em seu tamanho e configuração de planta. O aspecto de cada um desses apartamentos é, inevitavelmente, um prolongamento da personalidade de quem nele habita, apresentando decorações distintas: alguns cobertos de cortinas e tecidos pesados; outros de móveis de madeira de antiquário; por vezes repletos de imagens religiosas; raramente vazios, com pouquíssima ou nenhuma decoração. Há pessoas que apresentam essa casa com mais orgulho, que fazem uma espécie de visita guiada para a câmera, e outras que são vistas apenas em um recorte fechado, sem vistas ao seu entorno.

Edifício Master (2002)

A maioria dos entrevistados de Edifício Master possui entre 40 e 60 anos de idade, sendo raros os jovens habitantes do prédio. Cada um deles narra algum aspecto de sua biografia, sejam os casamentos anteriores, sejam as suas profissões, sejam os relacionamentos familiares. Numa das entrevistas, um homem que mal se apresentou já se despede e nos surpreende a brevidade de sua presença em cena. Ao longo da despedida é que seu relato se desdobra, ele lembra da mãe que faleceu ao seu lado em Brasília e, aqui está a parte desestabilizante do relato, o que mais o emociona é a sua gratidão pelo empregador que o permitiu viajar para estar junto dela. O homem parece chorar não pela mãe falecida, mas pelo orgulho de ser reconhecido como um bom funcionário. Um caso semelhante acontece com Esther, que diz que vestiu uma calça comprida para se jogar pela janela, depois de sofrer um assalto, mas desistiu de se matar por se lembrar das dívidas que ainda tinha a pagar.

Na maior parte dos casos, tratam-se de histórias comuns, casos de vida como se poderiam encontrar em outros lugares e contextos, sem fatos extraordinários, mas talvez apenas em um bairro como Copacabana e em um edifício como o Master, se encontraria uma diversidade semelhante, reunida a poucos metros quadrados. As instituições sociais, a precariedade do trabalho, a violência urbana, temas que podem ser encontrados em qualquer manchete de jornal, são discutidos ali. Há também ressentimento, mesquinharia e crueldade em alguns dos relatos dos entrevistados, que afirmam imagens negativas não apenas do mundo, mas por vezes também de si mesmos. O bairro de Copacabana, como todos os demais lugares, é apenas evocado nessas conversas. Não veremos as suas ruas, nem a orla da praia; as janelas, quando mostradas, dão sempre de frente a outras janelas.

Edifício Master (2002)

Edifício Master se inicia com um plano que mostra através do monitor das câmeras de segurança, a equipe de quatro ou cinco pessoas entrando no prédio e subindo juntas no mesmo elevador. Uma incorporação decisiva, retomada em diversos outros momentos, daquilo que está por trás das câmeras, o trabalho de feitura do filme e a equipe reduzida que o torna possível. É frequente que haja também, aqui e em outros filmes de Coutinho, o momento da primeira abordagem do diretor ao entrevistado. Em cada uma das vezes, essa abordagem é distinta, mas geralmente, a equipe chega, pede licença, dá bom dia, apertam as mãos e fazem comentários ligeiros: é um ritual de apresentação, o convite a entrada no apartamento, os cumprimentos iniciais, a apresentação do diretor, situações que ocorrem sob humores distintos de acordo com cada entrevistado. Tudo com a câmera na mão, em movimento, até que o próximo plano já mostre o entrevistado sentado e preparado para falar. A partir deste corte, a câmera fixa o primeiro plano como padrão das entrevistas, direcionando a atenção do espectador estritamente para a fala e as expressões faciais dos entrevistados, cujo nome logo é assinalado no canto da tela.

Edifício Master (2002)

Para além da dimensão pessoal de cada fala, os relatos são potencializados pelas condições semelhantes de apresentação das suas personagens, presentes a solo, em pares ou trios, sempre dentro do seu apartamento, que compreende um bloco demarcado do filme, sem voltar a aparecer em outros momentos. A montagem opera sobretudo no interior de cada bloco em particular, costurando apenas as falas de uma mesma personagem, não entre diferentes participantes do filme. Edifício Master compreende um mosaico, em que o que se diz no princípio pode ser espelhado muitas entrevistas mais tarde, estabelecendo retornos e paralelos entre pessoas e partes distantes do filme, através de temas e reações em comum. As recorrências, assim, são mais surpreendentes e as tensões entre as personagens ganham mais força pelo seu acúmulo sequencial e pela aparência de espontaneidade no desdobramento do filme.

Contribui neste sentido a escolha por manter, tanto quanto possível, a ordem cronológica das entrevistas na montagem, não buscar agrupar os relatos por temas ou perfis dos entrevistados, mas deixar que as relações entre as suas falas possam ser projetadas ao longo da sua duração. Em entrevista à Contracampo, Eduardo Coutinho esclarece suas operações de montagem: “O homem do Frank Sinatra […] é o personagem mais evidente, meio óbvio. Tanto é evidente que filmamos em último lugar e alteramos a ordem porque seria chantagem emocional. Nesse tipo de filme, não poderia ter. Então o colocamos no meio do filme. Fora isso, separamos duas tentativas de suicídio, que estavam grudadas na ordem cronológica, e três que cantavam, pois estavam um seguido do outro”. [1]

Dentre as entrevistadas, há uma particularmente interessante pela sua escassez de histórias para contar. É a última participante do filme, que acaba de chegar à capital, vinda do interior do estado. Essa jovem, de aparentes 17 ou 18 anos, faz uma figura ingênua, que se senta no chão e, quando a equipe entra no apartamento, estende a mão a Coutinho, perguntando “quem é você?”. Ao longo da entrevista, fala sobretudo sobre sua mãe e seu avô, que a enviaram ao Rio para fazer um curso de pré-vestibular. Está no Master a pouco tempo e nem sequer conhece os seus vizinhos; apenas, segundo ela, dias antes da filmagem pôde ver pela primeira vez quem era a criança que escutava brincar e conhecia apenas o nome. Depois de muitos relatos emocionados, é significativo que Coutinho e sua equipe tenham deixado esta como última entrevistada do filme, encerrando o filme com uma personagem serena, que parece não ter muitas histórias para contar, ainda não sofreu o trauma, o evento dramático, que as outras pessoas relatam, como se sua história pessoal ainda estivesse por ser escrita. “Ainda não sei o que eu quero ser”, é a última frase com a qual o filme termina, sendo esta a única participante do filme que fala sobre as expectativas de sua vida futura, não do passado.

As primeiras entrevistas para Edifício Master, no entanto, não são feitas por Coutinho, mas pela sua equipe de pesquisa, que durante um mês alugou um apartamento no prédio, conhecendo e entrevistando alguns dos seus moradores, no processo de pesquisa dos participantes do filme e, depois, exibindo as entrevistas filmadas para Coutinho no apartamento onde aconteciam as primeiras discussões sobre os possíveis entrevistados e a concepção das ideias cinematográficas e do mecanismo conceitual do filme. Acompanhamos este processo no documentário dirigido por Beth Formaggini, Coutinho.doc: Apartamento 608 (2009), que acompanha de perto o que se passa na base de produção. Ali o diretor e a equipe assistem a estas entrevistas de pesquisa, cujo material editado com as participantes do filme final se encontra nos extras do DVD de Edifício Master, dispondo as falas seguindo a ordem que os mesmos entrevistados são apresentados no filme. [2] [3]

Neste contato inicial, alguns dos moradores abordados desconfiam da filmagem, questionam as razões de serem entrevistadas, o que será feito dessas imagens, hesitantes da presença da câmera e de sua participação no filme. Os entrevistadores procuram saber quem elas são, ouvindo suas histórias de vida, pouco a pouco convencendo-as de seguir adiante e ajudando a definir alguns dos temas que poderiam “contar para o diretor”, quando acontecer a filmagem de fato. Cria-se, assim, uma expectativa para quando Coutinho entrará em cena, para a situação especial que será a filmagem com ele, e é importante para o projeto que ele se mantenha afastado até então, para que os entrevistados tenham um novo estímulo de também contar a ele pela primeira vez essas histórias. Nestas conversas iniciais, vemos ao mesmo tempo a preparação da peça e o ensaio com os atores, que, mais tarde, vão tentar convencer o diretor das suas performances.

Em cada entrevista presente em Edifício Master, portanto, estamos diante de uma reencenação. As personagens se vestem e se maquiam para o filme, assim como as assistentes frequentemente as lembram de falas que haviam combinado na preparação. Ao fim de algumas das participações, Coutinho questiona as performances e pergunta aos entrevistados sobre as razões do seu comportamento ao longo da fala. “Por que você não olhou para a câmera?”, ele diz a Daniela, que lê um poema. “Qual foi a mentira que você contou?”, pergunta à Alessandra, que conta sobre sua vida como prostituta. Esta última é especial para os rumos de Edifício Master. Ao fim da sua entrevista de seleção, diz que, para o dia da filmagem com Coutinho, deseja se apresentar como garota de programa, se vestindo a caráter frente para ser mais convincente nas histórias que vai contar. Dentre as possibilidades do seu relato, ela poderia escolher pelo papel de mãe, de jovem, de imigrante, de alcoólatra, mas ela quer interpretar este outro papel, que diz ser a “Alessandra da noite”. Vemos em Apartamento 608 a reação de Coutinho aos testes que assiste, inicialmente desinteressado pelas personagens de classe média e desacreditado dos rumos do projeto pela maior parte da preparação, o diretor ganha um novo ânimo a partir da presença de Alessandra. Em uma reunião marcada com a equipe, que esperava pela sua desistência, ele reafirma o desejo de levar o projeto adiante, deixando claras as suas novas ambições: “Eu queria que houvesse mais invenção, mais mentira. […] Essa mulher é maravilhosa porque ela vai ser um teatro”. [4]

Em Apartamento 608, a primeira entrevista realizada para o filme, quando Coutinho está finalmente a frente do entrevistado, é feita com Sérgio, o síndico do prédio, que recebe a equipe na porta do seu apartamento, como os demais participantes. Em Edíficio Master, no entanto, a introdução do entrevistado se dá de outra forma, em um plano que se inicia com a câmera na área do prédio, passando alguns dos moradores sentados a uma mesa, entrando por uma porta e encontrando o síndico sentado atrás de uma mesa de escritório, num ambiente completamente distinto. Fica claro que Coutinho e sua equipe deliberadamente refizeram a sua entrevista, inserindo esse personagem em um contexto próprio ao papel distinto que ele representa no prédio, que não é apenas de mais um morador comum.

Sérgio em Coutinho.doc: Apartamento 608 (2009)
Sérgio em Edifício Master (2002)

Ao final do making of de Formaggini, está presente a filmagem da que é talvez a cena mais conhecida de Edifício Master, quando um dos entrevistados canta “My Way” de Frank Sinatra. A princípio, no entanto, aquilo que toca no seu rádio é “New York, New York”, mas Coutinho interrompe a gravação e exige que ele troque para a outra música. Sabemos que o homem canta por três vezes e, após a última, vemos Coutinho entusiasmado, exclamando para a câmera de Apartamento 608: “É ficção pura! O documentário é isso”. Coutinho dirige o entrevistado como faria o diretor de um longa narrativo, introduz aquilo que quer de sua representação, prepara a emoção que deseja alcançar – com sucesso, afinal, trata-se da cena mais lembrada e comentada do filme. A visão de sua feitura desmonta a lógica convencional do documentário como registro do “real” e “espontâneo” e revela o modo como o trabalho de Coutinho passa por esse tipo de elaboração ficcional, tanto por parte dos entrevistados quando do entrevistador, ainda que detido sobre parâmetros bem definidos de uma abordagem própria ao registro documental – fiel à situação de filmagem e consciente dos dilemas éticos e estéticos de apresentar pessoas que contam as suas histórias reais.

Acompanhamos, através do conjunto deste material – Edíficio Master, Apartamento 608 e as entrevistas de pesquisa – a descoberta gradual de como é esse filme que devem fazer, a sua formulação de acordo com o contexto delimitado, adaptando-se às restrições que o espaço e a matéria verbal de seus entrevistados apresentam: em resumo, o que vemos é a invenção de uma forma fílmica, em um trabalho muito mais complexo do que a alcunha “documentário” pode fazer parecer. “Não vai ter o filme que eu quero, vai ter o filme que vai ser possível”, vemos o diretor comentar em certo momento. Sua filmagem não parte de concepções pré-definidas, não se apresenta como uma reportagem e não procura provar qualquer coisa sobre estas pessoas, Copacabana, o Rio ou o Brasil. “Mostrar a alma de um prédio, o espírito de um prédio, a diversidade de vida de um prédio. O filme é isso”, diz Coutinho em certo momento da preparação. Apenas a partir desse fundamento que todas as demais questões parecem vir. Dentre as ideias fílmicas que vemos discutidas, os atores, a montagem não-linear e a ficção se destacam: algumas delas presentes em Edifício Master e outras apenas cogitadas,mas todas decisivas para que o filme possível superasse as baixas expectativas que o diretor tinha a princípio e igualmente fundamentais para que o filme que Coutinho realmente queria fazer seja concluído cinco anos mais tarde, chamado Jogo de Cena (2007).

Matheus Zenom

Coutinho pede para trocar a música, em Apartamento 608 (2009)

Notas:

[1] Entrevista disponível em: http://www.contracampo.com.br/45/entrevistacoutinho.htm

[2] Este material de pesquisa está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kpRCNqjwQ5c

[3] O making of de Beth Formaggini também pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=z3OA_n4U4HM

[4] Alessandra, afinal, não cumpre totalmente a sua promessa, pois se apresenta vestida com roupas casuais e garante a Coutinho que não mentiu em nada na entrevista. Os 100 reais que diz ter gasto no McDonald’s põem isso em questão, no entanto.