Esta entrevista com Kiyoshi Kurosawa ocorreu no saguão do NH Collection Mitte, em Berlim, na manhã de 20 de fevereiro. O novo média de Kurosawa, Chime (2024), havia estreado na Berlinale na noite anterior, em uma sessão conjunta com August My Heaven, de Riho Kudo, como parte do programa Berlinale Special.
Chime é Kurosawa em forma condensada e simplificada. É tão claro quanto é misterioso, tão estranho quanto mundano, construído de forma tão habilidosa quanto direta. Um dos maiores apelos do gênero de terror para mim é que ele depende muito do cinema enquanto ofício. Claro, por causa das suas convenções bem conhecidas, provavelmente é também um dos gêneros mais fáceis de emular com truques baratos. Mas realmente criar uma ambiência, uma atmosfera, uma presença, como é o caso dos filmes de Kurosawa, requer um tipo de trabalho muito sensível. Ainda mais quando todos os elementos sobrenaturais parecem surgir de ambientes cotidianos, pessoas comuns, como se estivessem apenas à espreita por trás dessas camadas muito finas, esperando por um pequeno rasgo para se soltar.
Paula Mermelstein Costa
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Paula Mermelstein Costa: Uma parte importante de Chime se passa em um curso de culinária – que logo percebemos ter um grande potencial para cenas violentas com seus ingredientes crus e facas afiadas. Como você chegou a esse cenário?
Kiyoshi Kurosawa: Não há um grande significado nisso, escolher essa localização dentro do curso de culinária. Mas, como você já disse, ali, você tem todas as ferramentas, as facas e tudo mais, à disposição. É também um espaço que é isolado do mundo exterior de certa forma. E você tem essa relação de poder muito clara entre o professor e os alunos. Escolhi a sala de aula porque era fácil de entender e visualmente interessante, já que assassinatos e suicídios ocorrem em tais situações. Visualmente, era um ótimo local porque era muito claro e fácil de entender.
PMC: Também acho interessante que esses personagens estejam fazendo um trabalho muito sangrento e macabro, todos os dias, na cozinha, mas é como se isso estivesse adormecido, como se não pensassem muito sobre isso. E isso se relaciona com algumas tramas de seus outros filmes, como Cure, onde o assassinato também é praticado por pessoas que levam vidas bastante mundanas e não pensam sobre isso. É como se esse sentimento vivesse dentro de todos nós de alguma forma. Você sente que esse é um dos pontos das histórias de horror, trazer esses sentimentos à tona?
KK: Acredito que isso esteja latente em todos os seres humanos, mas geralmente não vem à tona. As pessoas que cometem assassinato são raras. No entanto, o gatilho, seja lá o que for, é incrivelmente importante. Para alguns, pode ser um gatilho muito aleatório, simples, enquanto para outros, pode ser algo que vem se acumulando ao longo de anos e anos. Quando um gatilho verdadeiramente infeliz ocorre, acho que as pessoas podem facilmente recorrer à violência.
Em termos de história, acredito que o personagem principal começa a temer cruzar três linhas. A primeira é a linha da lei social. Aqueles que a cruzam acabam sendo pegos pela polícia. Eles começam a temer a polícia. Outra é o medo de fazer isso novamente. É sobre moralidade. Uma vez que você ultrapassa os limites do “não matarás”, você pode acabar matando novamente em uma situação semelhante. Você pode acabar matando seu próprio filho, ultrapassando a linha da moralidade. A última é a consciência. Ter matado alguém. Esta é bastante direta, pois envolve o medo do fantasma da pessoa que você matou. Isso é a consciência. Quando essas três linhas são cruzadas, o medo dessas três linhas envolve o assassino repentinamente. Elaborei uma história com essa estrutura em mente.
Finalmente, embora essas três linhas, esses três medos, possam não ser algo que as pessoas pensam conscientemente em suas vidas cotidianas, ao cometer atos como assassinato, os humanos passam a entender esse tipo de confinamento dentro dessas três limitações. Portanto, no final deste filme, embora isso possa parecer bastante imoral, quis concluir a história com a impressão de que ele deu um passo em direção a superar essas linhas, em direção a se libertar desse medo.
PMC: Existem muitas teorias que dizem que os filmes de terror tendem a ter dois modos narrativos diferentes. Enquanto um seria a narrativa em si, o desenrolar da história, no outro a narrativa seria suspensa para experimentarmos uma outra instância, outros tipos de momentos. Queria saber se você vê dessa forma momentos como aquele em Pulse, quando o fantasma está saindo das sombras. Você acha que a narrativa fica um pouco em suspensão para que possamos experimentar aquele momento?
KK: Sim, claro. Não tenho certeza se isso responde à sua pergunta, mas retratar fantasmas é sempre um aspecto desafiador que requer muita criatividade. Isso pode influenciar muito a narrativa. Em outras palavras, surge a questão de se o fantasma existe como uma entidade tangível ou não. É um aspecto crucial que desempenha um papel significativo.
Em termos gerais, existem várias maneiras de abordá-lo, mas até certo ponto da história, o fantasma pode na verdade não existir e pode ser retratado como uma alucinação ou ilusão vista apenas pelo protagonista. Isso significa que, embora possa parecer que o protagonista o vê e que está lá, no próximo corte ele pode não estar mais presente, deixando a expressão limitada a ser vista apenas da perspectiva do protagonista. Enquanto muitos filmes param nesse ponto, geralmente vou um passo além. Inicialmente, o protagonista pode percebê-lo dessa maneira, mas gradualmente, a perspectiva é ampliada para sugerir que o fantasma realmente existe objetivamente. Isso mudaria os planos que fazemos; não é apenas o protagonista que o vê, mas ele está realmente lá, de um ponto de vista objetivo, visível para pessoas totalmente diferentes, e em alguns casos, se chegassem perto, poderiam até mesmo tocá-lo. A presença do fantasma é gradualmente solidificada como uma entidade tangível, tornando sua existência cada vez mais certa. O modo narrativo também muda conforme a história avança. É assim que filmes como Pulse foram elaborados.
PMC: Seus filmes têm uma qualidade muito material, tátil. Eles exploram diferentes texturas, tanto na imagem quanto no som. A abstração também parece ser algo importante, o vazio, a escuridão ou até mesmo o ruído. Isso é algo em que você pensa antes da filmagem, ou você trabalha isso durante a filmagem?
KK: Esta é uma pergunta muito interessante. Existem muitas maneiras de fazer isso. Para mim, eu diria que a coisa mais importante é o local, o lugar onde estamos filmando, porque quando estou trabalhando no roteiro, eu não tenho realmente essa ideia concreta de imagens e som. Geralmente, antes da filmagem, procuramos os locais onde queremos fazer a filmagem, e então é por intuição. Eu sei que este lugar é o lugar certo para filmar esta cena, porque você pode realmente imaginar muitas coisas aqui. E, como você mencionou, não se trata apenas do que é visível ali, não se trata apenas do que está no quadro. Eu posso imaginar o que vai acontecer fora do quadro. Por exemplo, se houver uma janela, posso imaginar o que vai acontecer do lado de fora da janela. Se houver uma sala nos fundos, apenas tornando-a escura e misteriosa, isso desperta a imaginação sobre o que está lá dentro. É sobre encontrar um lugar que desperte a imaginação dos espectadores. Tudo começa a partir daí.
PMC: Seu trabalho sempre parece muito consciente da história do cinema. Isso é importante para você?
KK: Sempre sou atraído pelo contexto histórico dos filmes, ou por verdadeiras obras-primas clássicas que foram filmadas de várias maneiras no passado, sempre as entendendo como uma referência e visando isso. Eu quero criar obras que estejam firmemente enraizadas na história do cinema. Claro, o que estou fazendo é algo novo, então tenho que superar isso, mas para superar isso, sempre penso que preciso entender o que é primeiro e partir daí.
Gostaria de acrescentar que um dilema com o qual sempre me deparo aqui é, ao tentar basear um trabalho em um filme do passado, até que ponto no passado devemos ir e em qual trabalho devemos nos basear? Mesmo que esteja no passado, a história do cinema é bastante clara em termos de quando nasceu e como evoluiu. Se quisermos voltar, podemos realmente voltar ao começo. Isso faz muita diferença dependendo de onde escolhemos como base. Por exemplo, quando voltamos bastante no tempo, não há som, então se torna um filme mudo. Voltamos aos filmes mudos, ou decidimos que o som esteve presente desde o início? Uma escolha importante aqui é se optamos por preto e branco ou cor. Mas uma vez que começa a diferir, dependendo de onde voltamos, nossa postura e até mesmo a postura contemporânea podem variar significativamente. Essa é a parte difícil.
PMC: Alguns de seus filmes me lembram dos filmes de ficção científica de Hollywood dos anos 50. Como It Came from Outer Space, The Thing from Another World, Invasion of the Body Snatchers. Eu estava me perguntando se você gosta desse tipo de filme, se isso é uma referência de alguma forma.
KK: Eu gosto deles, mas não tenho certeza se sou influenciado por eles. Talvez um pouco. Eu diria que fui fortemente influenciado pelos filmes de terror daquela época. Um dos principais temas dos filmes de ficção científica dos anos 50 e 60 era o fim do mundo, a humanidade desaparecendo – e você não vê muito isso nos filmes de terror… Raramente faço filmes de ficção científica, mas faço filmes de terror onde a civilização acaba. Em filmes como Pulse, Cure, também abordo temas como este. Muitas vezes faço histórias que acabam indo para esse tipo de lugar. Então, acho que poderia dizer que, em vez de terror, pode ser a influência desses filmes de ficção científica dos anos 1950 e 1960.
PMC: Eu estava me perguntando como esses diferentes tipos de tecnologias entram em suas histórias; a câmera de vigilância em Chime, a internet em Pulse, os daguerreótipos, filmes, toda essa mídia antiga e nova.
KK: Eu penso sobre isso até certo ponto, mas não sei se há uma intenção profunda por trás disso. Como os próprios filmes são feitos de uma forma que é precisamente uma fusão de tecnologias antigas e novas, naturalmente me interesso pelas histórias que lidam com isso. A fascinação por novas imagens ou novas ferramentas de comunicação e, por outro lado, seu horror – os filmes tendem a se interessar por essas coisas inadvertidamente. Acho intrigante quando os filmes lidam com isso de uma maneira visual.
PMC: Vi que você mencionou em muitas entrevistas como foi influenciado pelo trabalho de Shigehiko Hasumi. Eu estava me perguntando o que é sobre a visão dele em particular que te interessa?
KK: Estou impressionado que você esteja ciente disso. Sim, o Sr. Shigehiko Hasumi é um crítico de cinema que me ensinou sobre cinema quando eu era estudante universitário, e ele teve uma influência muito forte sobre mim, não apenas no campo dos filmes, mas também em vários campos, incluindo formas de viver. Essa influência continua forte até hoje. Sem dúvida.
Em termos simples, o que aprendi com o Sr. Hasumi sobre filmes pode ser resumido em dois pontos. Primeiro, ao assistir a um filme, realmente assista, realmente ouça. Em vez de se concentrar apenas em decifrar a história, liberte-se disso e realmente veja o que está sendo retratado, o que é visível, e realmente ouça o que está sendo transmitido. É sobre ver e ouvir. Refinar esse sentido e não ser arrastado apenas pela história. Isso teve um impacto significativo em mim. Em segundo lugar, os filmes, quer você esteja assistindo, fazendo ou mesmo apenas falando sobre eles, são algo para o qual um único ser humano dedica toda a sua vida, todo o seu ser, indo atrás. Essas foram as duas principais lições.