Viagens dentro do próprio tempo (Rudolf Thome, “Zeitreisen”)

Rot und Blau (“Vermelho e azul”, 2002)

Dentre os expoentes da geração sessentista que havia revolucionado o cinema alemão, poucos chegaram ao séc. XXI com tanta vitalidade artística quanto Rudolf Thome — ainda e sempre fiel à dimensão irredutivelmente íntima de sua própria capacidade de expressão particular, tendo a obra dele atravessado diversas metamorfoses antes de consolidar o estilo distintivo que lhe caracterizaria a maturidade autoral (circa 1991). No cerne dos filmes, encontramos a perspectiva do utópico se manifestar em arranjos conviviais subjetivamente idealizados — desde a possibilidade de sua materialização primeira até a ansiedade quanto a sua sustentabilidade última. Thome assume o princípio estético-moral de fazer cinema usando a esfera da vida cotidiana como escala referencial para devaneios subsequentes; buscando incorporar a pulsação representativa da experiência do mundo — tal e qual se afigura em aspectos concomitantes aos da existência dele — em encenações narrativas que operem a substancialização de um estado de espírito; os dramas permeados pelo sutil transe decorrente dos mistérios relativos à encarnação.

Voltemo-nos a trilogia Zeitreisen (i.e., “Viagens no tempo”) — formada por Rot und Blau (“Vermelho e azul”, 2002), Frau fährt, Mann schläft (“Mulher dirige, homem dorme”, 2003) e Rauchzeichen (“Sinais de fumaça”, 2005). Thome já havia brincado com a temática no belíssimo Tigerstreifenbaby wartet auf Tarzan (“Bebê listrado de tigre esperando por Tarzan”, 1998). Contudo, no caso da trilogia não se trata de ficção científica: a viagem no tempo será metafórica. Veremos que a experiência do fluxo de presentificação dos sentimentos é incontornável à consciência humana. Thome nunca fez um filme de época — todos viriam a se tornar filmes de época, a sua determinada época, documentos do zeitgeist em que foram gestados materialmente. Ele acolhe a lei da física segundo a qual a câmera só consegue filmar o momento presente — por outro lado, só nos sendo possível montar os registros daquilo já passado, ao passo que a gênese de um filme sempre vai ser o planejamento para realização futura, e todos esses planos de temporalidade se nivelarão tão somente durante o transcurso da exibição. [1]

Rot und Blau (“Vermelho e azul”, 2002)

O filme do passado é Rot und Blau (2003), sobre o reencontro tardio entre uma mãe e a filha que ela não criou, fruto de um casamento frustrado, reaparecendo como jovem adulta. Também há o reencontro da personagem da mãe com um homem de seu passado ainda mais remoto; e uma subtrama de thriller envolvendo a filha e o dinheiro do falecido pai. Contrariando eventuais propensões ao mau-agouro (Thome jamais deixou de levar em conta que a ideia de um interlúdio edênico possa acabar mal, pois frágil em essência), o cineasta procura reconstruir o tecido afetivo do mundo como forma de fazer transparecer a polivalência emocional das afinidades eletivas, sejam as recentes ou as antigas. Sendo pelo sereno reencantamento dos sentidos interiores junto a conduta das relações interpessoais que para ele se conjura uma harmonia poética sobre a cadência do esquema melodramático.

Rot und Blau marca o início da colaboração entre Thome e a atriz Hannelore Elsner (de grande fama na TV alemã), a qual compreenderia 5 filmes. Ao infundir sua verve novelesca no papel da mãe, a interpretação de Elsner destoa da compostura de Serpil Turhan no papel de sua filha, defrontando os modos de quem anseia por perdão com os de quem pode oferecê-lo (as cenas nas quais elas retomam o contato são exemplares). E se o passado talvez nos seja a dimensão incomensurável mais tangível à nível ocular — presenciamo-lo reverberante no semblante abismal de Elsner, vertendo lágrimas sobre tempos acumulados e outros reconditamente suspensos, descortinando remorso ao invés de nostalgia (como quando ela está dirigindo, ou ao telefone, e ainda em seu ritual de “queima do passado”). Num filme de Thome, a felicidade costuma ser germinada pela graça das contingências — e aqui também é dado o ensejo aos personagens: a chance de retomar fios deixados inconclusos na história sentimental de cada um surge feito fábula.

Frau fährt, Mann schläft (“Mulher dirige, homem dorme”, 2003)

O presente fica por conta de Frau fährt, Mann schläft (2004), sobre os dias turbulentos de uma família (“a mais feliz da Alemanha”, diz-se na divertida cena em que eles participam de um programa de televisão) cujos membros estão atravessando um período de autoesclarecimento sentimental — cada qual individualmente e, como efeito, todos coletivamente —, até que um evento drástico lhes extrema o processo introspectivo, desestabilizando o já desgastado compromisso conjugal do casal central. Nesse recorte narrativo, a família está fazendo sua mudança de casa (para o epicentro da arquitetura então contemporânea: a Potsdamer Platz rediviva no centro da Berlim reunificada) — acentuando desta forma a percepção da temporalidade presente enquanto espaço de transição por natureza. Noutras palavras, o presente enquanto estado de contínua liminaridade entre o descompasso a que estão sujeitos os arranjos do passado no contexto de uma atualidade posterior e a agoridade intrínseca às decisões que vão moldando o futuro embrionário. A fixação no presente também implica a vinculação do ser à lógica da passagem do tempo, desembocando na consciência da mortalidade como corolário do tempo que nos é finito.

Thome diz acreditar na descoberta da realidade por meio do cinema — a realidade, segundo ele, seria “o agora”, mas podemos complementar: o agora e o lirismo advindo de sua suscetibilidade face às coisas da composição fílmica. Numa cena chave, os personagens deveriam rezar o Pai Nosso, porém os atores se enrolam com a letra da oração — para além da tensão corporal que os intérpretes do casal (Hannelore Elsner e Karl Kranzkowski) vêm a modular conforme as necessidades dramáticas, sobrevém o circunstancial: na primeira tomada, duas pessoas desacostumadas a orar acabam expondo seu estranhamento ao fazê-lo para o filme, tornando tão mais palpável a angústia dos personagens. A poesia está à volta e cabe ter espirituosidade para acolhê-la. Thome não repete a tomada, não dá aos atores a oportunidade de “lapidar” o Pai Nosso, mantendo-o desconcertantemente desjeitoso — idem com o colapso nervoso de Elsner no funeral (sequência na qual, vale dizer, também se sobressai o admirável trabalho de som desses filmes, intercalando o murmúrio ambiente e a trilha de Katia Tschemberdji). O título “Mulher dirige, homem dorme” é inspirado pela abertura de Viaggio in Italia, de Rossellini — e aqui, da mesma forma, no lindíssimo desfecho, o casal em crise viaja à Itália, onde por fim testemunhamos: a saída do presente se dá no exato momento em que resoluções são efetuadas.

Rauchzeichen (“Sinais de fumaça”, 2005)

Já o tema do futuro se encontra em Rauchzeichen (2006), sobre a paixão que irrompe ardente na terceira idade de um homem e uma mulher, quando ele visita a pousada que ela mantém com a ex dele na Sardenha, o que se desenrola em paralelo a um enredo envolvendo o destino de uma jovem árabe aparentemente foragida por ligações terroristas. O elenco é o mesmo (Elsner, Kranzkowski, Turhan, Altaras), incluindo o filho e a filha de Thome (sempre no papel de filhos dos protagonistas), cujo crescimento físico vínhamos presenciando desde os filmes anteriores e que aqui nos surpreendem com a visão de sua infância deixada para trás, à medida que a imagem deles passa a estar terminantemente cristalizada na adolescência durante aquela temporalidade feita fílmica. A conclusão da trilogia se distingue das outras partes pelo tom mais delirante, condicionado pela locação sarda — como de costume, Thome contrasta a majestade da natureza ao meio social pequeno-burguês, enquadrando o esplendor bruto dessa tal paisagem para dar palco a emoções indômitas.

Ao longo da miragem idílica, imperam impressões da intervenção humana: plantando árvores, burilando o selvagem, cantando o luar. Nesse western de Thome (alcunha muito utilizada para se referir a Rauchzeichen), a relação com o território é mediada pelo sentido do deleite enquanto horizonte da aclimatação. E o futuro? Parte da confluência entre vida e morte — consoante as peculiares escolhas narrativas dele, pois claro, então a resposta a uma tragédia só poderia ser algo tipo os túmulos posicionados debaixo do laguinho artificial que foi maniacamente construído por amor, sobrepondo a celebração de um casamento impetuoso aos ritos do funeral que o estimula. Os três filmes têm por mecanismo acompanhar uma constelação de personagens, de forma que as referidas “viagens no tempo” assim remetam ao desdobramento simultâneo de suas vidas. Afinal, talvez mal sejamos capazes de perceber o funcionamento do tempo senão em como ele primeiro afeta a sustentação mundana de nossas afinidades eletivas.

Lucas Saturnino

Rauchzeichen (“Sinais de fumaça”, 2005)

Nota:

[1] Thome vem registrando isso há mais de 20 anos nos diários que publica em seu site (incluindo diários de filmagem, montagem e escrita de roteiro): https://moana.de/Blog/Blog.html