
Dois gêneros emblemáticos da cinematografia francesa são revisitados por Chantal Akerman no decurso dos anos 1990: o “filme de casal” (Nuit et Jour, em 1991) e o “filme de adolescente” (Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles, em 1994) — ambos, no contexto local, enraizados numa tradição artística de estirpe existencialista, que influi na encenação da condição humana pelo dimensionamento situacional do livre-arbítrio e de esforços de autocriação, a título de transparência íntima. Para a cineasta belga, o que teria representado realizá-los àquela altura? Pode-se apontar, por exemplo, que o trabalho dela com esses gêneros é atravessado por ecos da longa ressaca de 1968, decisiva nos desdobramentos do pós-Nouvelle Vague.
Mas antes, dê-se conta do sentido estrutural de Nuit et Jour: um filme alicerçado em dualismos — noite e dia, interior e exterior, casal e não-casal (pois a questão é menos um triângulo amoroso do que a contraposição entre uma relação oficial e outra furtiva). Cada polo carregando o estopim incoercível da própria expiração frente ao advento cíclico de seu adverso. Desses dualismos, os primeiros remetem aos eixos de ambiência do cotidiano (sua temporalidade e sua espacialidade, fundamentos da obra akermaniana) através da modulação de elementos do ordinário. Além do quê, locação e período do dia são orientações basilares para organização duma filmagem, e daí a ascendência multifacetada do apartamento, seja enquanto meio controlável, pequeno estúdio ou décor restrito.
Se, na esteira das desilusões sessentistas, o cenário do apartamento porventura passe a signo de um horizonte conformista — cuja escapatória parecera mais conjecturável em outro momento —, Nuit et Jour então busca apresentá-lo como território virginal, esvaziando-o de maior domesticidade material, a fim de viabilizar sua tonalidade romântica. Na contramão de tantas residências que encontramos no cinema de Akerman, essa se distingue pelo mobiliário inconcluso, desembaraçando os humores locais ao isentá-la da carga cênica pequeno-burguesa (a intromissão dos pais e dos vizinhos — não só o affair — desestabiliza esse arranjo alheio ao aburguesamento), a ternura estando assim associada justamente ao aspecto do que ainda ficou por fazer, à poética dos caprichos próprios das temporadas de composição em curso.
Escrevendo sobre as reverberações de 1968 no cinema francês, a pesquisadora britânica Alison Smith nota certo ímpeto por reconsiderar a concepção de casal à luz dos movimentos feministas que se difundiam ao longo da década de 1970; e também como forma de confrontar, na esfera privada, o desgaste do idealismo de outrora — entre outros, haja vista Anatomie d’un Rapport de Luc Moullet & Antonietta Pizzorno (1976). Em se tratando de Nuit et Jour, pensemos no comentário que muitos costumam fazer sobre uma suposta verve comercial do filme — essa impressão não estaria ligada à disposição fabular com que Akerman (re)enquadra a intimidade? Entretanto, ressalte-se: sua matéria não é memorabilia, não é rebobinar até Une Femme est une Femme ou Jules et Jim. Ainda é esse “mundo do depois” (da pílula e da AIDS, inclusive). Num filme que termina com uma mirada para mais à frente — Julie em marcha, olhos fixos no futuro: “no ano que vem”, como antes repetia o casal, feito mantra.
Sobressai-se, quanto às vicissitudes do “pessoal ser político”, o enfoque no relacionamento enquanto espécie de “comuna de dois”: os namorados recolhidos no casulo da própria ordem normativa (mesmo as janelas tendo vistas voltadas para o espaço interno), até sua utopia de insularidade afetiva acabar ruindo em função da volubilidade abstrusa do desejo. Após o início do affair, a personagem parece na iminência de vir a ser tomada pelo receio de que o companheiro a reconheça durante suas deambulações; já no fim, ela volta à rua, se incorporando ao espaço da coletividade, expondo a autodeterminação. A feição da interioridade como postura reativa a questões organizacionais da convivência.
Lucas Saturnino