Le Révélateur (1968), filme secreto

Em 28 de abril de 1968, Marie Pour Mémoire (1967), primeiro longa-metragem de Philippe Garrel, recebe o Grande Prêmio do Festival de Hyères, de grande importância histórica para o cinema experimental europeu. Garrel não vai a premiação, como se o prêmio lhe fosse uma ofensa, algo que apaziguasse um trabalho de escândalo e inibisse o aspecto contestatório do seu filme. Aos 20 anos, diz estar cheio de “fazer cinema” e declara se dedicar, a partir de então, apenas à profecia. Semanas depois, viaja com uma pequena equipe e os dois atores que conheceu durante o festival para realizar um filme ainda mais radical que o anterior, Le Révélateur (1968).

A fala de Garrel poderia ser mero pedantismo e afetação juvenil se o projeto a seguir não fosse tão distinto e cumprisse, ao menos em parte, suas palavras. Em Marie Pour Mémoire se via ainda certa narrativa realista, marcada por discursos de suas personagens e pela sensibilidade de uma nova juventude, situacionista, que antecipa o discurso do maio de 68: era ainda o “retrato de uma geração”. A partir de Le Révélateur, os filmes de Garrel serão negações de qualquer tentativa de racionalização sobre a realidade ao seu entorno. Pela droga, pela loucura ou pelo mito, será a busca de outros problemas, outra vida, que o permite dar uma resposta criativa ao sentimento de inércia do ambiente em que se encontrava.

É frequente encontrar, nos textos sobre o filme, a interpretação de que seria uma resposta de Garrel ao maio de 68, que acontece quase simultaneamente às filmagens. O jovem cineasta, que já havia feito um conjunto de curtas-metragens, videoclipes, reportagens televisivas e Marie Pour Mémoire, teve participação ativa na militância deste período e, em meio aos protestos, realiza também o noticiário Actua I (1968), que permaneceu perdido por cerca de 50 anos e seria o primeiro de uma série de reportagens engajadas, que não tiveram continuidade. Depois de comparecer a uma reunião política à qual faltaram todos os outros, Garrel decide que para ele o maio de 68 acabou e parte para a Alemanha, onde filma Le Révélateur. [1]

Se o filme pode  ser visto como o ponto de chegada dos anseios relacionados aos protestos, isto se dá mais efetivamente pela sua negação. Sua atitude não está muito longe do modo como os jovens franceses defendiam a Revolução Cultural maoísta: “destruir tudo, começar de novo”. Le Révélateur vira as costas ao cinema, tal como entendido em termos de produção, de história, de “arte”, bem como a sociedade e os problemas imputados ao artista. Não há mais palavras de ordem no seu filme, suas personagens se calam, deixam de ser veículos para o texto e se manifestam como pura exterioridade, como corpos, volumes, vetores que se cruzam e atravessam a imagem.

Le Révélateur trabalha com três atores – Bernadette Lafont, Laurent Terzieff e Stanislas Robiolle, interpretando a mãe, o pai e o filho, respectivamente – a cruzar uma floresta, em uma fuga constante, de que não temos explicações. Esse núcleo nos remete ao mito cristão, a sagrada família e sua fuga para o Egito, mas se Garrel retorna à história mais contada do ocidente – tema recorrente em Marie Pour Mémoire e em seus filmes posteriores, como Le Lit de La Vierge (1969), ou nas narrativas de origem em La Cicatrice Interiéure (1972) – é para fazer dela um uso distinto, ligado a tal profecia. Resumindo o mito a sua estrutura mais simples e universalizante, o que Le Révélateur apresenta parece ser, então, a sagrada família antes de ser assim chamada pelas escrituras, antes que se atribuísse a ela a seriedade e o sentido religioso que conhecemos. [2]

O título escolhido por Garrel acentua tanto um mistério sobre o menino – “o revelador”, centro de todas as relações, quem deve ser protegido – quanto aponta ao próprio cinema e à revelação fotográfica. Ainda, deve-se pensar no “rêve” ali contido e no aspecto de sonho que o filme tem, como um todo. Aqui, a história que se narra e a maneira de narrar estão atreladas; a ação só se completa pela abordagem da câmera que a registra. “Le Révélateur” se volta à duração do plano, ao desafio físico do ator, aos jogos de luz, às modulações do movimento de câmera, à dissolução de um centro ou argumento básico narrativo. Valendo-se de uma pequena equipe e da contribuição fundamental do fotógrafo Michel Fournier, Garrel estrutura o seu filme em uma série de plano-sequências, blocos cênicos aparentemente desconexos, em que cada passagem encerra uma ideia visual sem construção causal.

A travessia das personagens é acompanhada em diversos momentos pela câmera em um carro, que se aproxima ou se afasta da família, que permanece num passo contínuo. Com frequência, estas imagens serão apresentadas entre outros blocos cênicos, reforçando a impressão de que é uma caminhada sem fim, em meio a qual as personagens realizam ações simples, de um sentido onírico e poético, como estender o lençol para que o filho durma no meio da estrada. Nestas passagens, o rosto tantas vezes inexpressivo ou cansado dos pais é contraposto aos sorrisos e a gesticulação enfática da criança, cujo olhar direto para a câmera ressalta seu mistério, e que chega até a entregar um ursinho de pelúcia para alguém atrás dela, nos fazendo atentar a toda brincadeira que também está posta ali.

Existe uma pulsação interior nessas imagens que remete a um sentimento primitivo, como se Garrel estivesse lidando com uma matéria atemporal. [3] O motivo da fuga, jamais visto, pode ter qualquer origem, mas a proteção do filho permanece uma ação instintiva. Nas cenas em que apresenta o espaço interno da casa, vemos o menino debaixo das escadas ou os pais brigando em um palco, a que só ele assiste. Há algo que permanece escondido, sem explicação; é essa área misteriosa e a reincidência de motivos semelhantes que faz pensar não apenas que estas poderiam ser imagens de sonho, mas de febre.

Em uma das sequências centrais, a família corre sorrateiramente por um matagal, sempre avançando certa distância e se abaixando para desaparecerem completamente sob a grama, num dos momentos mais intensos do filme. Sucessivamente, o pai avança, se detém e chama a mãe, que o repete e chama o filho; por último, a criança imita o que viu fazerem e, sorrindo, chama a própria câmera, que segue o caminho, esgueirando-se do mesmo modo. O gesto do menino introduz a participação da câmera na ação como uma espécie de “quarta personagem”, presente de maneira atuante na composição de cada cena. Neste momento, a relação entre câmera e atores se fecha, o sistema de Le Révélateur se torna evidente e o filme se afigura como “coisa plástica”, em que atores, luz, câmera, movimento e espaço são resumidos a uma mesma matéria sensível e, digamos, “puramente cinematográfica”. A técnica já não apenas emoldura a cena ou encerra um estilo, mas contribui essencialmente numa forja de elementos inseparáveis.

Filme anômalo e secreto, Le Révélateur se afigura como um manifesto do que o cinema pode ser, bem como a pedra-de-toque do cinema Garrel. Sem letreiros e sem palavras, apenas a inscrição de seu título, excluindo os nomes de seus atores e equipe técnica, como se houvesse um anonimato por trás do filme, um segredo por trás de sua origem, que preserva apenas o que nele é expressão. Sua ordem poderia ser modificada e, mesmo assim, o filme continuaria a funcionar, pois cada um de seus planos contém uma força individual, que o faz valer por si mesmo. É o gesto de realizar cada uma dessas imagens como tal que também caracteriza esse manifesto, como se também o seu estado fosse apenas provisório e infinitas fossem as possibilidades de sua apresentação.

Fazer um filme mudo e preto-e-branco em 1968 é uma atitude radical de Garrel. Privar-se da cor e do som é não apenas ir em direção à uma “essência” que liga o filme às suas origens, mas também a recusa de um comercialismo generalizado, demarcando uma posição deslocada de quase todo o cinema ao seu redor e às suas convenções. Garrel e aqueles que o acompanham seguem a fundo o tal sentido de profecia, atribuindo ao filme um gesto heróico, como anuncia-se uma expedição antes de partir para o desconhecido, onde frequentemente se desaparece. Le Révélateur é o resultado de ter seguido este caminho até então insondado.

Matheus Zenom

Notas:

[1] Segundo declaração de Garrel em entrevista a Philippe Azoury e Jean-Marc Lalanne, para Les Inrockuptibles. Disponível em: https://www.lesinrocks.com/cinema/philippe-garrel-entretien-avec-un-etre-brulant-32891-02-10-2011/

[2] Particularmente, há uma cena em que o menino usa o vaso sanitário e se limpa com as páginas de uma Bíblia pendurada na parede ao seu lado, deboche que não deixa dúvidas quanto à liberdade com que Garrel se apropria dessa história.

[3] Também o figurino dos atores remete a isto e o grande casaco de pele vestido pelo pai, Terzieff, é tanto um item de moda do final dos anos 60, quanto algo que remete a um homem primitivo, das cavernas.