Conversa com Júlio Bressane (I)

Júlio Bressane nos recebeu em seu apartamento no dia 23 de março, acompanhado de seu neto João Batsow e, mais tarde, de sua companheira Rosa Dias. Nos sentamos na sala e, imediatamente, Bressane começou a conversa, partindo da leitura que havia feito de um dos textos que publicamos ainda na primeira edição da revista e da sua relação com o “Limite” de Mário Peixoto.

Nenhum artista leva adiante um trabalho de seis décadas sem que isto tenha uma importância vital para si, ainda mais aqueles que se enveredam por uma vertente radical, experimental. É preciso adentrar profundamente no ofício para seguir, colocar-se novos problemas e assim, também, mover a história dessa arte, de modo muitas vezes subterrâneo, mas fundamental. O cinema atravessou Bressane desde muito jovem e Bressane o atravessou como poucos, em um trabalho de erudição e pesquisa que continua a buscar em muitos outros lugares a sua razão de ser.

“A Longa Viagem do Ônibus Amarelo” (2023), longa-metragem dirigido por Bressane em parceria com Rodrigo Lima, é um testemunho desta vida e deste trabalho particular, em que os filmes comentam a si mesmos, através de paralelos presentes em seus mais de quarenta títulos – e em tantos outros nunca exibidos. “A Longa Viagem” estreou no Festival de Roterdã de 2023 e foi exibido pela primeira vez no Brasil durante o Festival Ecrã, na Cinemateca do MAM-RJ, em 1 de julho de 2023.

Em nossa conversa, tivemos a oportunidade de ouvi-lo falar sobre os detalhes de sua trajetória, bem como a dificuldade e a aventura que foi realizar estes filmes. Bressane nos contou sobre a “longa viagem” com Rosa e Andrea Tonacci, seu período morando em Londres e Nova York, as contingências materiais de “Matou a Família e Foi Ao Cinema” e “O Anjo Nasceu”, até o resgate internacional de sua obra pela inesperada ligação de um dos mais importantes críticos europeus de sua geração.

A extensa pesquisa iconológica de Aby Warburg foi um tema trazido pelo cineasta em mais de um momento da conversa e parece particularmente significativa tanto para a estrutura de “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo” quanto para os rumos desta própria conversa. Como o projeto mais ambicioso de Warburg, seu Atlas Mnemosyne, a fala de Bressane se estende como uma teia de associações, tecendo fios em diferentes direções, onde textos e imagens, o cinema e a vida pessoal, a alta e a baixa cultura, épocas e locais distintos se aproximam, encontram ecos.

Chegamos em sua casa ainda no início da tarde e à medida que a noite se aproximava, sem percebermos, a sala se tornava mais escura e a figura de Bressane quase indiscernível. Do outro lado da sala, ouvíamos atentos à sua voz. As luzes só foram acesas quando ele nos mostrou uma de suas edições da Mnemosyne, a primeira publicada na Europa.

Após mais de três horas, não conseguimos falar sobre tudo o que gostaríamos, conforme nossas questões aumentavam, saindo de lá ainda mais admirados pelo seu trabalho e pessoa. Felizmente, pudemos retomar nossa conversa na semana seguinte, em uma segunda parte que será publicada em duas próximas edições da Revista Limite.

Texto introdutório por Matheus Zenom e Paula Mermelstein; entrevista por Gabriel Linhares Falcão, Matheus Zenom, Paula Mermelstein e Vinícius Dratovsky; fotografias por Vinícius Dratovsky.

***

Júlio Bressane: No início de 1970, em janeiro mais ou menos, no antigo Instituto Nacional de Cinema, o Jurandyr Passos Noronha e o filho do Humberto Mauro, Zequinha Mauro, estavam passando e eu assisti uns trinta, quarenta minutos do “Limite”. Eu não conhecia o “Limite”, não tinha visto antes. Fiquei muito impressionado com aquilo, mas naquele momento, como eu estava fazendo muita coisa, não tive distância, não tive observação daquela coisa. E aí, talvez, isso seja mais importante por isso, porque uma vez que você vê, observa e faz, a coisa já está morta. Mas eu tive uma pulsão, vamos dizer assim, um inconsciente ótico, do “Limite” no “Cuidado Madame”, sem que eu soubesse. Muitos anos depois, quinze ou vinte anos depois, vendo um dia o “Cuidado Madame” no Festival de Turim, em que fizeram uma cópia nova e o filme passou – isso foi em 2002 ou 2004, o filme tinha sido feito em 1970 – foi que eu vi onde é que o “Limite” tinha me marcado e foi nesse filme. Você observou [Bressane se refere ao texto “Algumas considerações sobre Cuidado Madame”, de Matheus Zenom] e essa foi uma observação que nem eu tinha feito na época, fiz sem saber o que tinha a ver.

Uma cena que mais me impressionou no “Limite”, e foi uma sorte, porque o filme tinha uma hora e tantos e eu só vi quarenta minutos, foi uma cena que parece que depois o próprio Jurandyr usou em um documentário [“Panorama do Cinema Brasileiro”], não estou certo, mas é um movimento de câmera que não existe no cinema até ali. Em todos aqueles filmes do [Marcel] L’Herbier, [Jean] Epstein, [Germaine] Dulac, [Abel] Gance, todos eles que fizeram aqueles movimentos de vanguarda franceses do início do século XX, ao que o “Limite” está um pouco atrelado, nem mesmo no cinema russo, tinha sido feito aquele movimento, aquela audácia de câmera, que eu disse que era quando o cinema configurava o “signo do Eu”. É um plano que é trabalho do Mário Peixoto e do Edgar Brasil, em que a câmera na mão desce pelo corpo da mulher, sai andando com ela e depois a abandona, vai embora, por cima de uma estrada vazia, por uns arames farpados, um mato, e depois volta pra mulher. Quando eu vi aquilo, fiquei pensando que isso não existia no cinema, que eu não tinha visto um movimento daquele. E esse é um movimento que você [Matheus] observou e que tem no “Cuidado Madame”, da câmera abandonar os atores. Fiz isso por intuição, nunca pensei naquele momento no “Limite” e tinha ficado com aquela visão precoce que eu tive lá, sem poder assimilar isso.

Depois, quatro ou cinco anos depois, eu fiz um filme que foi o “A Agonia”, que tem, vamos dizer assim, um pastiche, uma paródia do “Limite”. Peguei alguns planos-chaves do “Limite” e refiz ali, mas aí já conhecendo o “Limite”, já compreendendo aquelas formas. Era inédito, ainda, como é até hoje no cinema brasileiro aquilo, mas mesmo assim o “Cuidado Madame” teve uma força mais poderosa, mais emotiva, mais pathos, do que depois, quando eu já dominava aquilo, porque era uma coisa tão forte que eu não percebi. Só depois é que eu fui perceber o que era uma coisa evidente. Isso foi uma observação que ninguém fez e eu achei isso muito curioso porque não se tinha visto ainda o cinema assim, o cinema ainda tava atrelado à história, a imagem tinha perdido a primazia do enunciado, a história tinha tomado esse lugar que tem até hoje.

Matheus Zenom: Essas foram as imagens que mais me marcaram nas primeiras vezes que assisti aos seus filmes. Ao mesmo tempo, é ainda diferente do que acontece no “Limite” porque a câmera continua e a personagem é que vai…

JB: Tem duas vezes, porque tem essa em que a pessoa desaparece e depois volta, mas tem um interior em que as atrizes tão numa piscina e a câmera dá um passeio pela casa e vai até um ferro de passar, lá dentro de um aposento. É uma coisa que se desvia, mas vai dentro não só do ritmo, mas também de uma espécie de iconografia doméstica: o espanador, o corredor, a louça e, finalmente, o ferro de passar. É o mundo delas, das empregadas, ali. E tem essa da multidão, também, você tem razão. Se bem que é um plano de onze minutos, a câmera vem da rua, elas entram em uma avenida e somem numa multidão, a câmera espera e elas voltam.

MZ: Como foi pensar o uso do plano-sequência dessa forma? Porque é bastante diferente do que existia até então no cinema.

JB: O cinema começou como plano-sequência: eram planos de três minutos que se rodavam inteiros. Depois é que, na feitura dos filmes, com o Griffith e tal, se começou a decupar, montar… Desde o meu primeiro filme, eu sempre tive uma intuição do plano sequência. Desde os filmes em que eu estava ainda me formando, fazendo meu primeiro filme, sempre fiquei atraído pelos plano-sequências. Sempre, desde sempre. Mesmo nos filmes industriais, americanos, cheios de planos sequências de dois, três, quatro minutos sem cortes, o plano-sequência sempre me atraiu. O primeiro filme que eu fiz, de longa-metragem, tinha um longo plano-sequência, fixo, inclusive. Tinham só movimentos panorâmicos, mas era um plano-sequência de três minutos e tanto. Depois, eu fiz “O Anjo Nasceu”, que é exatamente a saturação do plano-sequência: é todo filmado em planos longos, que vão em um ritmo que, no final, se estende ao infinito, à saturação.

O plano-sequência tem uma coisa que sempre vai me interessar. Além do personagem, da história, do entrecho, o que há é o filme. Então, o plano-sequência tem essa abertura, ele se curva sobre si mesmo, é um signo que vê a si próprio. A coisa principal do plano-sequência é o cinema, a evidência do plano-sequência. Em um plano de três, quatro minutos, de seja o que for, é aquela duração estendida que se torna o principal e nisso aí é que tá o cinema. O plano-sequência é uma espécie de plano autorreferencial, se refere a si próprio e esse “si próprio” é o filme, é irredutível. Então, eu sempre me interessei por isso – não pelo tempo corrido, mas pela duração da concentração, da tensão sobre uma coisa.

Eu fiz um filme ano passado, que está saindo agora, que se chama “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, que tem 7h20min. São 58 filmes que eu fiz e estão ali, em uma ordem cronológica que é rompida por um anel, que eu chamei de uma “Medalha do Dilúvio”, de filmes sobre um leitmotiv, que têm um motivo principal. Então, “A Longa Viagem” começa pelos filmes de 66, 67, 68… e então tem esse anel, com o leitmotiv da escada, com cenas de oito ou nove filmes em que têm cenas na escada. O anel que tem mais tempo é, justamente, o de plano-sequência: só essa sequência tem 1h40min. Não de todos, mas, nesses 58 filmes, alguns planos-sequências.

O plano-sequência, ao contrário, também tem uma dificuldade muito grande porque, justamente, ele corta essa coisa única do cinema que é a montagem. Nele, você faz em um plano só o que poderia fazer em dez planos, você tem que fazer com que todas essas partes que estão isoladas se juntem. O plano-sequência é como um ideograma, em que você junta várias partes para formar uma coisa só: bota o homem, bota a boca, bota a casa e aquilo aparece, tem um significado, que diz “tranquilidade”. Então, é uma maneira de sentir o pensamento, o ritmo daquilo, para que esteja de acordo com o sentimento que você tem. Não é como se fosse uma teoria, algo assim, mas um sentimento que você tem, em que percebe que seria melhor fazer de uma maneira e não de outra. Esse início tem como princípio, também, como se fosse uma tradução e para esse início você precisa de uma intuição; não tem uma regra, não tem um sistema, nem mesmo uma técnica de como fazer isso. Nesse sentido, todas essas regras que, a priori você deve conhecer, elas devem ceder e é a partir delas que surge essa intuição. Você fazer um filme inteiro de plano-sequências porque é melhor não quer dizer nada, mas encontrar essa isomorfia entre o fundo e a forma é que coloca a questão de usar ou não o plano-sequência, fazer em decupagem e tal.

Eu tenho sempre admiração pelo plano-sequência e também acho que, nele, você deixa que apareça mais coisas no filme. Quando você começa a trabalhar com o plano-sequência, há uma possibilidade de erro muito maior do que se você fizesse tudo controladinho e essa possibilidade de erro é que é importante, isso é o que vai criar a patologia, vai dar o sentido artístico da coisa. O plano-sequência também é capaz de fazer com que você intua o que está fora da cena, de tal maneira que está paralisado aqui, em algum momento você sai do quadro também, você emana para cá, e é nisso que começa a coisa, porque o que está no quadro tem que ser compreendido junto com o que está fora do quadro. Se você não percebe o que está fora do quadro, você tem um entendimento parcial do que está dentro dele.

Vinicius Dratovsky: Você falou do filme que você tá lançando agora, “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, e eu fico curioso para saber como surgiu isso, o que vocês estavam procurando quando iniciaram, qual foi o plano.

JB: Como uma coisa surgiu, como ela apareceu, é sempre difícil você precisar, mas “A Longa Viagem” começou há muito tempo atrás, por volta de 2010, logo depois que eu fiz o “Cleópatra”. O Rodrigo Lima começou a juntar o material que existia de filmes meus passados e foi ali que eu comecei a ter essa ideia, de reunir todo esse material, cerca de 80 horas, 58 filmes. Só tem dois filmes meus que não estão lá, “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo” e o que nós acabamos de fazer, “O Leme do Destino”. São filmes, assim, quase que anônimos. Por mais que meus filmes sejam conhecidos, são filmes anônimos: conhece você e tal, alguns outros, mas são filmes que nunca passaram, por exemplo. Então, eu vi aquilo com uma certa distância. O meu primeiro filme foi feito em 59, eu tinha 12 anos e recuperei. Eram 3h filmadas em uma câmera 16mm e recuperei vinte minutos, dez minutos. Quer dizer, tudo isso eu tinha desde 1959 até 2020. Então, fiquei pensando como é que eu poderia fazer, com aquele material, um filme. Como se poderia fazer um filme daquilo. Foi aí que comecei a montagem, vendo o que aquelas imagens tinham entre elas de alguma coisa que pudesse ser separada daquele todo. Se o filme tem 1h30 e você tira dois minutos, a coisa fica descaracterizada. A ideia foi, justamente, como poderiam ser aproveitados esses tropos, esses lugares comuns, essas figuras de sintaxe cinematográfica, o que existia ali disso. Nós identificamos 27 figuras, que são esses anéis, essas Medalhas do Dilúvio: o close, o travelling, os movimentos de câmera. Então, fiz um filme com esses filmes, a história de um cinema, desde Lumière – um conceito de filme, de produção de imagem.

Nisso, não tem nada de biográfico, como se fosse uma biografia sua que você tirou do seu filme, não é nada disso. Seria mais um biografema do que uma biografia. A diferença é que a biografia é a consciência e a memória, que você deposita e faz a coisa; o biografema parte disso, mas é mais do que isso: enreda pela ficção, pela memória e por outros tempos. Então, seria um biografema porque nada pessoal, íntimo, de autor, tem ali. Inclusive, o “Ônibus Amarelo” é essa coisa: não tem enredo, não tem personagens; o que tem ali é o filme, o que é “cinema” ali – pode ser cinema bom ou mal, mas o que é “cinema”, ao que ele se reduz, aquilo tudo é o filme, antes de qualquer outra coisa. Então, foi uma coisa que eu achei que era importante, não que fosse uma teoria, que poderia ser. O sentido da teoria é o que se afasta; a teoria é o que você vê de longe, a visão de Deus: você olhando os seus próprios filmes e fazendo uma reflexão. A “Longa Viagem” não é isso. São filmes que aboliram o autor, não têm autor, não têm personagem: tem o filme! Isso é o que está naquelas 7h20min, são os filmes que estão ali. As relações, as interpretações, as intrarrelações, cada um que faça como entender; eu nunca pretendi e nem pretendo dar direção a coisa nenhuma.

O [Friedrich] Schiller, poeta e grande pensador alemão, dizia justamente isso, ele considerava que se você procurasse dirigir o olhar do espectador ou a quem você se referisse, seu trabalho estava inutilizado, considerava que o primeiro crime que você poderia fazer em uma obra de arte era esse, querer dirigir seu leitor. Então, o que tem ali é o filme, é o cinema, como você pode dizer a mesma coisa da música, da pintura, da literatura: o que sobra é a escritura, o próprio quadro, o silêncio musical. Foi isso que eu pensei e o que me fez fazer foi essa luta de potência e inibição. O que conduziu esse filme foi uma vontade de fazer. Isso tudo que eu estou te dizendo foi pensado depois que o filme foi feito; enquanto estava fazendo, o que havia era uma determinação, uma vontade de fazer. Depois que você faz, vê como cada um vê: é tão difícil pra você entender o que você fez quanto a qualquer outro. Sobretudo, é duplamente difícil porque o que você faz e que é realmente forte pode ser visível para outro, mas pra você é invisível, porque é evidente; é óbvio, mas você não vê. E você faz, justamente, nesse sentido de procurar compreender uma coisa que você não sabe o que é. Então, esses filmes são feitos como você faz uma coisa irresponsável, ociosa, sem predeterminação, e que você pode também empurrar a corda que te cerca.

Gabriel Linhares Falcão: Como foi a viagem que intitula o filme? Essa viagem que você fez com o Tonacci e a Rosa?

JB: Nessa época eu morava na Inglaterra, fui pra lá em 1970. O que tinha naquele momento ali, em Londres, e que estava chegando já bastante pasteurizado, bastante diluído, era um sabor da filosofia oriental. Todas essas práticas do “mundo do Oriente” foram muito difundidas nessa época: budismo, alimentação, ioga, técnicas de respiração, ideograma, tudo isso veio à tona nesse universo inglês, londrino e em outros lugares também. Eu já tinha feito três filmes na Inglaterra e, tomada por aquilo, a Rosa começou a traduzir um livro de filosofia indiana – que eu não me lembro agora exatamente qual foi o livro –, mas traduzindo assim, em casa, para ela. Vi um anúncio, num daqueles jornais clandestinos que corriam no bairro naquela época, o bairro de Notting Hill Gate, vi um anúncio chamado “Yellow Bus”, uma empresa que tinha uns ônibus antigos, pintados de amarelo, que faziam um trajeto de Londres até Darjeeling, do outro lado da Índia, em uma viagem de dois ou três meses.

Quando vi aquilo, achei aquele negócio bom, mas achei difícil você ter que se submeter a regra de viajar em um ônibus e ter que parar aqui e ali. Um grande amigo meu, que já conhecia de muitos anos, um homem maravilhoso, um gentleman, uma alma delicada, um homem muito fino, Andrea Tonacci, estava Londres e eu falei para ele: “Tonacci, eu vi um anúncio aqui, eu vou lá procurar. Vamos fazer essa viagem!”. Então, eu fui lá em Shepherd’s Bush e peguei o folheto – que lamentavelmente perdi e seria hoje um tesouro de informação, o sabor de uma época inteira – que informava tudo, o trajeto a fazer, os caminhos a tomar, o que encontrar em cada aldeia daquelas, em Herat… isso no meio do Afeganistão. Em 1970, não tinha nada, eram casas de barro e nada, não era nem aldeia, era uma transição entre a maloca e a aldeia, mas antigo, moravam pessoas ali há milênios. Tudo isso era uma dificuldade e esse livreto dava todas as dicas, onde encontrar tudo: “chegando nessa cidade você procura um fulano, que é um austríaco, que tem uma casa, você se hospeda…”, lugar onde tinha dinheiro falso, passaporte, droga, o que você quisesse tinha uma dica ali, isso com todos esses lugares perdidos do mundo! Eu, quando vi aquilo, falei “vamos fazer essa viagem aqui, vamos seguir esse conselho aí”.

Eu e Tonacci, então, fomos à Alemanha e ele comprou um desses Volkswagen conversíveis, um carro espetacular. Em Hamburgo, onde tem a fábrica da Volkswagen, tem várias lojinhas em que fazem tudo no carro, eles fizeram uma adaptação e colocaram uma cama dentro dele. Ficamos, eu, Tonacci e a Rosa dormindo juntos nesse carro durante seis meses. Então, saímos e marcamos um encontro em Veneza, e aí começou. Levei comigo uma câmera 16mm e uma câmera super 8 e pensei em fazer um filme de viagem, alguma coisa assim meio de ficção. Nada disso infelizmente saiu, mas era uma coisa pra aproveitar ali a gente, fazer uma viagem mesmo, mas tudo de ficção, tudo assim meio “Nanook”, tudo encenado e depois feito. Mas o Tonacci me convenceu de outra coisa. Naquela época nós estávamos ainda em pleno influxo da antropofagia, do Oswald de Andrade, e o Tonacci disse: “Não, vamos fazer um filme de nós comendo” e eu pensei “Vou comer o Oriente inteiro” [risos] e isso deu o clique do negócio, em filmar a gente comendo.

Comecei a filmar em Veneza e depois fomos a viagem inteira, pra Iugoslávia – hoje Sérvia e Croácia –, uma parte da Albânia, Grécia e Turquia. Daí seguimos por Síria, Iraque, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia e, depois, o Nepal. Filmei tudo isso em super 8 e 16mm. Uma coisa extraordinária porque, apesar de ser em 1971, 72, aquilo era um outro mundo, realmente, em todos os sentidos, em gestos, hábitos, arquiteturas, um outro mundo. Eu filmei aquilo tudo e chamei isso de “Viagem do Ônibus Amarelo”, que foi o que nós seguimos. Esse material, por uma porção de razões do destino, se perdeu, ficou em um depósito muitos anos na Inglaterra e eu só fui encontrar isso muitos anos depois. Recuperei, mas das 3h, 3h40, que filmamos, sobraram quinze minutos, mas mesmo assim o que sobrou foi importante, porque são lugares, caminhos, monumentos que não existem mais, como os Budas de Bamiyan que explodiram, tudo isso nós filmamos antes da coisa. É um material precioso porque são lugares que desapareçam, pessoas mesmo, a parte lá de cima do Kashmir, onde teve a guerra. Então, eu salvei por sorte alguns fragmentos dessas coisas, que eu só vim montar e ver muitos anos depois. Foi essa a ideia: era um filme sem montagem, com material bruto que filmamos nessa viagem, que foi em ordem geográfica – saiu dali e terminou aqui – foi filmando nessa ordem que já tinha, não precisava montagem, foi montado na câmera.

Depois, quando peguei esse material e juntei, chamei tudo de “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, porque eu transformei essa viagem na viagem de todos os filmes, na perda de todos os filmes, por isso eu chamei “Medalhas do Dilúvio”. Essa é uma expressão criada pelo Onffroy de Thoron, que escreveu um livro sobre o Brasil pré-histórico. Ele foi um homem que procurou, em todo o Brasil, os sítios do século XVI pra trás, da cultura pré-histórica: grutas, inscrições rupestres, sinais, pedras, megalitos, construções míticas, lendas. Ele chamou cada um desses lugares que ele localizou de “Medalhas do Dilúvio” e eu achei apropriado porque meus filmes, na verdade, são dilúvios: uma coisa que ninguém viu, foram feitos por uma vontade minha de persistir e de sobrevivência de vida, filmes que foram levados pelo dilúvio.

Então, chamei o filme inteiro de “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo” como se ele inteiro fosse uma só viagem, e que começa exatamente em uma viagem. Em 1958, minha mãe me levou nos Estados Unidos, a Nova York, me deu uma câmera e um projetor de 16mm. Apesar de eu ser garoto ainda, gostava muito de cinema e já ia muito ao cinema, muito. Ela sabia que eu gostava, me deu a câmera e o projetor e eu, então, comecei a filmar essa viagem. Em seguida, no fim do ano seguinte, eu fui à Europa e filmei também, pela primeira vez. Comecei com filmes de viagem, todos esses filmes, entre 59 e 62, ou seja, eu tinha entre 12 e 15 anos. Isso se repete no filme, têm vários filmes de viagem dentro do “Longa Viagem”: viagens que eu fiz ao México, pela América Latina, pelo Brasil sobretudo. São fragmentos, mas tá tudo dentro do filme. Agora, é um filme em que você tem que ter uma curiosidade de ver, no sentido de fazer uma escavação óptica, porque a montagem que eu fiz desses filmes não tem nenhuma explicação aparente. Não tem data, não tem letreiro, não tem uma indicação se foi em 71, se foi em 94, fulano, beltrano, o título… Não tem nada. É uma sucessão de imagens, com os fotogramas originais dos filmes e os fonogramas, mas alguns fonogramas alterados: sons de um filme em outros etc. Então, essa longa esteira não tem nenhuma explicação, vai se sucedendo as imagens.

Isso foi feito por uma obra infinitamente superior à minha, que é uma obra de um estudioso de arte alemão chamado Aby Warburg. Esse homem fez um livro chamado “Mnemosyne”, que é uma montagem rigorosa de imagens, o zênite de qualquer montagem em música, literatura, pintura, que foi feita – o pensamento humano, montagem, foi essa “Mnemosyne”. Agora, é uma coisa que você pra ver precisa ser quase que um exegeta daquilo, porque “por que essa imagem está montada com essa?”, em princípio você não sabe por que, o que que é aquilo, e essa é a lógica da interação interna entre significado e significante que é fortíssima, que é a força do negócio dele. São sessenta e tantas pranchas pretas, em que ele colocava as fotografias de quadros famosos em preto e branco e montava sobre um tema, que ele não dizia qual era. No livro que eu vou mostrar a vocês, tem uma explicação do editor, que fez um mapazinho pra você acompanhar: o editor! O Warburg não fez isso, ele achou que você devia vir aqui pra entender o que era; o editor, que é um comerciante, mostrou “leiam por aqui” [risos], o que é uma chave, mas dificulta o projeto final do livro, que era justamente você ir atrás dele.

Esses projetos tendem a uma coisa que é o que todos nós buscamos, que é ser outro. Ninguém quer ser você mesmo, você quer ser outro. E esses trabalhos te obrigam a uma coisa que é a autotransformação, que é uma coisa impossível, o homem não se transforma. Mas, pra entender aquilo, você precisa fazer um percurso grande pra chegar lá e é esse percurso que te transforma. Você só vê o que você sabe, então você tinha que ir lá buscar o que é esse enigma. Essa foi a grande lição que eu tirei da “Mnemosyne”. É a velha desculpa do Fernando Pessoa, que dizia o seguinte: “É melhor não dar desculpas do que ter razão”. Então, o Warburg não dá desculpas: ele mostra a coisa e, se de fato você quer saber, você tem que ir lá buscar. Ou seja, é uma coisa um pouco pretensiosa porque obriga você e talvez você não queira ir, mas para você compreender, te obriga àquilo, como o “Finnegans Wake” do James Joyce. Hoje tem uma biblioteca de textos exegéticos do “Finnegans Wake”, fizeram de tudo, mas é um texto que se você for enfrentar, demora; tem muita literatura que você tem que percorrer pra compreender aquele processo.

O Warburg é a mesma coisa, é um tipo de montagem que obriga você a se movimentar; você precisa se transformar, fazer um esforço. Nem de longe a minha coisa é isso: é evidente demais e eu não tenho esse tipo de força de pensamento como ele, de maneira nenhuma, mas obriga também a que você vá entender aquilo como um filme, e não como muitos filmes que estão ali montados. Como um corpo só e, pra isso, você precisa entrar dentro do filme de uma outra maneira e não só como uma citação: “Ah, esse é aquele, esse é aquele outro”. Não. Nenhum daqueles é coisa nenhuma, todos aqueles são aquilo que você tá vendo aí, tão fora, são retirados do contexto onde foram produzidos, fora inclusive da emoção que produziu aquilo. Foi feito a quarenta, cinquenta anos atrás e nem você mesmo se lembra do que se passou ali.

É um filme que vocês têm que ter essa questão da necessidade disso, não é uma coisa, assim, feita para que você compreenda. Justamente, a dificuldade é essa, você a princípio não compreender. Um dos juízes mais radicais dizia que “tudo que você compreende está morto”, ou seja, você tem que se interessar pelas coisas que você não compreende e fazer com que seja próprio para ele mesmo. No século XVIII, o [Denis] Diderot dizia que tinha um gênero de pintura que é feito para o próprio quadro se contemplar, que dispensa o espectador. Ele ia além, dizia que qualquer obra de arte feita pensando no público é uma criação perdida. São posições radicais, mas não é pra excluir alguém: é a dificuldade, justamente, para incluir alguém. Isso tudo é pra você ver que são coisas que você faz hoje, mas que estão longe de serem novidades; são novidades, mas que, como toda coisa contemporânea, está atrelada ao inatual, porque está ligado ao ontem. Todo agora está ligado ao ontem, o “já” está ligado ao ontem, o “contemporâneo” está sempre ligado ao ontem.

MZ: Você disse que tem filmes seus desde 1959. São mais de 60 anos de produção. Se eu não me engano, é a produção mais longa do cinema brasileiro, não é?

JB: Bem, te digo: não queria ficar com essa fama, viu? [risos] Tanta coisa, que eu gostaria de não ficar com essa fama. Mas talvez. Essa coisa é um pouco destino também, entendeu? As coisas acontecem.

Eu nasci aqui na Rua Aperana, morei a minha vida inteira ali. Eu tinha meus pais separados, era garoto já, quatro, cinco anos. Quem tomava conta de mim era uma tia minha, viúva, irmã do meu pai, que tinha um fascínio por cinema. Como eu tinha uma situação familiar bastante explosiva, pra mim o cinema era sempre bom pra sair e ela me levava quase todo dia ao cinema, víamos dois filmes por dia. Tudo aqui, pegávamos o bonde e tal. Então, eu comecei desde pequeno a ficar possuído pelo cinema, pela mistificação do cinema, pela ilusão do cinema. Isso acabou se dando bem ao meu espírito, porque eu sempre vivi de ilusão, a ilusão sempre foi uma parte importante da minha infância e o cinema ajudou muito nisso, a formar a ilusão em mim, quando eu era garoto, seis, sete, oito, dez anos. Isso ficou em mim e, talvez, logo se distanciou de mim. Eu comecei a ver o cinema como uma coisa, não mais como produto daquelas emoções imediatas, de fugir pra ver. Mas fui vendo aos poucos, aquilo foi preenchendo outros ramos do ser, outras necessidades. Desde pequeno sempre tive vontade e, tão logo ganhei a câmera, comecei a manusear ela como se fazia no cinema, fazendo panorâmicas, movimentos de câmera, cortes rápidos, imitando… [risos] Então, o cinema já tinha me deformado, já tinha uma deformação do cinema. Tudo foi uma coisa com um sentido de necessidade pra mim, de vencer algumas inibições, poder esclarecer algumas coisas que pra mim eram difíceis. Depois é que eu percebi melhor ainda, o cinema pra mim sempre foi um instrumento de transformação.

Eu percebi bem cedo a dificuldade do cinema. Eu fui ser assistente do “Menino de Engenho” [do Walter Lima Jr.], fui assistente do “Viagem [Ao Fim do Mundo]” do Fernando Campos. O primeiro filme que eu fiz foi sobre o escritor Lima Barreto. Eu conhecia muito o Francisco de Assis Barbosa, a filha dele também, e ele tinha escrito uma biografia do Lima Barreto, no final dos anos 50. Em 64, eu acho, ele publicou uma segunda edição, “A Vida de Lima Barreto”, que eu tenho aí até hoje. Eu li e comprei toda a obra do Lima Barreto, das edições Globo, tenho aí, e li toda a obra do Lima Barreto e li o livro do Francisco de Assis Barbosa, que era um senhor, um homem muito educado, muito civilizado, um homem da Academia. Li aqui, fiquei fascinado e quis fazer um filme sobre Lima Barreto. Fui procurar a iconografia da época, as músicas da época. Muita gente me ajudou, isso foi em 65, 66, eu tinha 19 pra 20 anos, sobretudo na parte musical, o Ary Vasconcelos foi um homem também muito sensível comigo, ele era um pesquisador de música do início do século e me deu todo um repertório imenso que eu usei no filme.

Eu percebi já logo no início essa questão da dificuldade do filme – depois, no “Cara a Cara”, então, aí ficou bastante evidente pra mim – e que o cinema era uma espécie de um organismo intelectual, sensível, que se movimentava pra atravessar as disciplinas. Eu vi que o cinema atravessava tudo isso, todas as artes, a pintura, a música, a literatura e mesmo a física, a química, o laboratório. Eu percebi isso e vi que essa era, justamente, uma exigência do cinema que ninguém, ou poucos cumpriam, eu percebi a exigência que era atravessar as disciplinas pra entender onde é que o cinema se faz, porque o cinema se faz nessas disciplinas. O clichê cinematográfico é renovado pelas disciplinas. Se você não botar o clichê cinematográfico em contato com outros signos, ele não se modifica. Toda a influência vem daí, você tem que ter um choque com os outros, travessia. Isso eu demorei a perceber completamente, mas fui aos poucos nessa direção.

O filme seguinte do “Cara a Cara” foram dois filmes, que eu fiz juntos, foram o “Matou a Família e Foi ao Cinema” e “O Anjo Nasceu”. Mas aí já foi um passo bastante mais avançado, porque entre o “Cara a Cara” e esses dois filmes eu passei uma temporada na Europa e lá vi muitas experiências de ampliação de filme de 16 pra 35mm. Fiquei interessado nisso porque fiz uma ligação entre o fotograma e essa questão da luz. O fotograma, uma película, é uma pasta que apreende a luz, feita de microgrãos e cada grão desses tem um pedaço da luz que vai dar no todo. O Gance dizia “O cinema é a música da luz” por isso, porque no fotograma transparente, que não tem nada, ele vai criar uma sombra, que é a imagem e é essa sombra que ordena o fotograma, ou seja, é a música. Então, eu percebi que o 16mm ampliado fazia saltar o grão, que era o que naquele momento os laboratórios mais procuravam esconder, pra ficar mais parecido com o 35mm, coisa que era um absurdo, justamente porque era o grão que dava essa diferença, aparecia o grão. Ou seja, você perceber que a imagem era constituída de grãos, que cada grão tinha uma qualidade de luz, era mais um avanço dentro do filme.

Com esses dois filmes aconteceu uma coisa muito além do que eu esperava. Fiz os dois em 16mm e preto e branco. Revelei. Mandei ampliar em São Paulo, que era o único lugar que fazia, o laboratório. Nessa passagem de revelações, como era muito precário, isso em 1969, a revelação do 16mm foi feita no que se chamava de um “banho muito usado”, então imprimiu como se fosse uma poeira em cima do negativo e aquilo foi um desastre. Quando vi aquilo, pensei: “Acabou, perdi os dois filmes”. Um chefe do laboratório me chamou, eu fui e ele falou: “Você pode tentar fazer uma coisa pra diminuir essa poeira, algo que nunca fizemos aqui e podemos tentar, que é fazer um polimento do negativo”. Isso em si já é uma aberração como formulação, porque polir o negativo quer dizer destruir. [risos] Pensei que já iria perder tudo, então aceitei. Eles pegaram uma máquina lá, fizeram uma adaptação e fizeram o tal polimento. Melhorou em 90%.

O que aconteceu e foi inesperado, algo que afastou o filme, mas que pra mim foi a coisa melhor, é que o grão se destacou, aquela imagem se salpicou de grãos, você via o negativo. Sobretudo no final do “O Anjo Nasceu”, que é espetacular: aquela imagem de dez minutos e só grãos pulando ali, a imagem vai se desfazendo quase. Foi isso que afastou o filme e, ao mesmo tempo, foi essa a invenção do filme, também por acaso, porque foi o polimento que tirou a poeira de cima. Então, eu terminei os filmes, montei e tive uma surpresa muito grande, porque quando fiz esses filmes não pensei em exibi-los, pensei em fazer pra gente aqui, mostrar na Cinemateca, sem exibir esses filmes. Mas um homem que eu conhecia que trabalhava com cinema, um velho homem, ele me disse: “Olha, eu vou mostrar esse filme pro Severiano Ribeiro”. Eu conhecia o Severiano, o pai, que morreu, estive em um jantar há muitos anos atrás em que ele estava presente, fui apresentado, mas eu nem fazia cinema nessa época. Ele, não sei por que, aceitou ver o filme e viu. Viu e me telefonou, o Severiano Ribeiro me telefonou, o testa-de-ferro dos distribuidores americanos no Brasil! Ele falou: “Olha, eu vi seu filme, quero lançar o seu filme”. Eu tomei um susto quando ele me falou isso, fiquei com vergonha! Falei: “como é que ele vai fazer um negócio desses…” [risos] Pois bem, ele me chamou no escritório dele, fez quinze cópias do “Matou a Família e Foi ao Cinema” e lançou em doze cinemas aqui no Rio, do Leblon até o Méier, em todo o circuito dele. Eu tava no meio de filmagem, no meio de janeiro de 1970, estava envolto em outras coisas e nem pensei nisso, mas recebi um telefonema em que me falaram: “Júlio, o filme estourou. Tá dando muito público” e eu falei “É mesmo?”, fiquei meio com medo até, meio envergonhado. Ele me perguntou: “Você tá aonde?” e eu tava na Barra da Tijuca, fazendo “O Anjo Nasceu”. Ele falou: “Quando você puder, dá um pulo aqui na Cinelândia pra você ver”. O “Matou a Família” tava passando no Odeon e eu fui. Quando cheguei, tava um formigueiro na porta do cinema: “Matou a Família e Foi ao Cinema” e um formigueiro na porta. Eu fiquei de longe e nem fui lá, pensando: “Meu Deus, o que que é isso?!” [risos] Fiquei com vergonha daquele negócio, não sei porque.

O Ribeiro ia fazer mais vinte cópias pra lançar em São Paulo e ia lançar no Brasil todo. O chefe da censura de Brasília entrou no Odeon e retirou as cópias todas; com a polícia lá, ele tirou a cópia do projetor e colocou na porta: “Interditado”. E aí, proibiram o filme no Brasil todo: esse filme ficou proibido por vinte anos! “Matou a Família e Foi ao Cinema”, nesse filme não aparece nem o cotovelo de ninguém, não tem nada. Foi um balde de água fria, mas eu continuei filmando. O Ribeiro aí me telefonou e falou: “Olha, eu soube que seu filme foi preso, então vamos fazer um outro”. Um capitalista, um homem riquíssimo, me chamou pra fazer um outro! Eu falei “Vamos”. [risos] E aí eu fui no escritório dele, na Rua México, no sexto andar, em que você subia pela escada e ele falou: “Vamos fazer o seguinte, faz um outro filme agora”. Fiz um contrato e escrevi um roteiro chamado “A Divina Dama: Eu Amei Greta Garbo”, “um filme com Grande Otelo”. Entreguei pra ele e, na hora, ele me deu o negativo e o dinheiro para fazer o filme. Eu tava iniciando a Belair, que era uma coisa menor: eu ia fazer um filme e o Rogério [Sganzerla], outro. Mas, com esse contrato do Ribeiro, eu chamei o Rogério e falei: “Eu to com um contrato aqui, com isso aqui nós vamos fazer cinco filmes” e aí fizemos seis! Pegamos o negativo, dividimos, com outra parte do dinheiro compramos negativo 16mm, eu fiz um filme e ele fez outro… Fui lá no Ribeiro e falei pra ele: “Ao invés de entregar um filme ao senhor, vou entregar seis” e ele aceitou na hora, não quis nem saber, falou “Ótimo!”. Ele tinha lançado o filme do Rogério, “A Mulher de Todos”, que tinha dado até dinheiro aqui no Rio.

Com isso, nós fizemos a Belair, que já existia, mas ampliou. Foi fazer e fechar, porque, no auge do negócio da Belair, quando nós íamos expandir o negócio, houve uma proibição a priori dos filmes. Fomos enquadrados na Lei de Segurança Nacional, disseram que o filme era feito com dinheiro do Marighella… Com o “Matou a Família e Foi ao Cinema” eles criaram uma cortina, assim, de terrorista e tal. Nós fomos embora do Brasil, os filmes nunca foram lançados, o Ribeiro aceitou, viu que não foi sacanagem nossa, que foi uma circunstância. A Belair ficou muito famosa e incógnita, não passou nenhum filme da Belair, dos seis filmes. Então, essas são histórias de Medalhas do Dilúvio, de coisas que foram feitas, mas que não tiveram a sua circulação. Faltou, e isso seria obra de algum sociólogo ou antropólogo, estudar por que que faltou, por que que esses filmes não foram exibidos, o que que houve ali. Esse estudo não foi feito. A história do cinema brasileiro acaba em 1969. Após o surgimento da Belair não foi feito estudo nenhum, porque precisavam, pra fazer esse estudo, revolver o passado e isso é um tabu, até hoje. Estudos só a partir dos anos 80, ou dos anos 70 botando esses filmes como “movimento underground”, “filme experimental”, coisas assim, tudo isso pra não chegar às discussões sobre os filmes. Até hoje. Não se tem distinção nenhuma entre o que seja uma coisa e outra.

MZ: Na época, você passou esses filmes em festivais? Porque vocês saem em 1970 do Brasil, não é?

JB: Não, na época não. Essa coisa foi uma coisa tão macabra, envolveu uma briga política tão… eu vou me abster de falar disso, vou deixar pra um sociólogo, pra um antropólogo se um dia quiser fazer. Mas, com essa ruptura, eu fiquei quase vinte anos sem apresentar filme em festival nenhum fora do Brasil e aqui no Brasil quinze! Festival de Brasília, do Rio, todos recusaram esses filmes, até os anos 90, e na Europa também. O meu último filme que passou foi “O Anjo Nasceu” no Festival de Cannes, na Quinzena dos Realizadores. De 1970 até 1992 filme nenhum meu passou em festival nenhum, recusado em todos os festivais. Havia uma cortina de ferro que impedia que você chegasse [risos]. Em 92, não sei como, esse encanto foi quebrado por alguém que assistiu o “Brás Cubas” em um festival na Itália, acho que em Salsomaggiore, não estou certo, e me telefonou. Isso em 88, 89. Eu pensei que fosse um trote, quase desliguei. Um italiano me disse: “Assistimos o seu filme, Brás Cubas, e queríamos saber se você fez outros filmes”. Disseram que gostaram muito do filme. Nem eu sabia que o filme tinha ido pra Salsomaggiore! A Embrafilme, na época, fez uma cópia, mandou pra lá e não me disse. O filme foi lançado aqui em um fim de semana e tirado de cartaz. Dois ou três anos depois, o diretor do Festival de Taormina, Enrico Ghezzi, me ligou e perguntou se eu tinha algum filme pra mandar pra lá. O último filme que eu tinha feito era o “Sermões”, em 1990. Mandei o filme, fui lá, apresentei… aí foi que abriu. A partir daí, fui convidado pra vários festivais, até que em 2000, 2001, teve uma grande retrospectiva de todos os filmes que eu tinha disponíveis no Festival de Turim. De lá pra cá, tive trânsito em vários festivais, muito mais do que eu nunca imaginei. Foi uma coisa que aconteceu, que eu não esperava e que foi fortuita.

VD: Nos anos 90 é que seus filmes passaram a ser conhecidos, então.

JB: Foi uma espécie de reencontro do tempo. Aí foram passar as coisas que tinham sido um pouco perdidas.

MZ: Nesse período da década de 70, vocês vão do Rio pra Paris e de Paris pra Londres, certo? Você disse que fez três filmes em Londres, pode falar sobre eles?

JB: Nós saímos daqui em março ou abril de 1970. Levei daqui pra Paris os negativos, ainda não revelados, do “Cuidado Madame” e do “Sem Essa, Aranha”, com as fitas de som direto do Nagra. Em Paris, fui no laboratório da Éclair, em que fizemos os filmes todos: revelamos os negativos, montamos, mixamos e tiramos cópias. O negativo tá lá até hoje guardado. Quando, em 2000, o Festival de Turim mandou fazer uma cópia nova do “Cuidado Madame”, eu fiquei impressionado porque a cópia nova ficou melhor do que a original, uma cópia perfeita. Nisso, os franceses são geniais, eles têm uma preservação lá que é espetacular. Pois bem, terminamos os filmes e, nesse momento, nós íamos fazer outros filmes lá. Eu ia fazer um filme chamado “SOS Brasil” e o Rogério tinha dois projetos: um que se chamava “O Rei dos Ratos” e outro que era uma adaptação do “Manual do Guerrilheiro Urbano” do Marighella – que teria sido um filme genial, havia um vazio ali e esse filme iria filme iria entrar em uma discussão política extraordinariamente, muito mais que o Costa-Gavras, que o Bertolucci, ele iria entrar com uma força espetacular. Mas, por mais uma dessas ironias e mal-circuitos, mal-fluidos do passado, não se realizou isso. O acordo que nós tínhamos de venda de filmes com um mercador francês, por uma intervenção maldosa, não se realizou, e nós aí ficamos sem o dinheiro. Eram 75 mil dólares com que iríamos fazer os dois filmes, mas não se realizou. E nem o que seria o destino tanto do “Cuidado Madame” quanto do “Aranha” que era ampliar os dois filmes pra 35mm, pra aí lançar lá. Nenhuma dessas coisas foi feita, os filmes permaneceram em 16mm.

Diante disso, tivemos um convite de irmos pra Inglaterra. O Caetano tava lá e um dia telefonou, junto do empresário dele, o Guilherme Araújo, pediram pra nós fôssemos pra lá, o Rogério, a Helena e eu. Nós fomos. Isso foi em junho ou julho de 70, já tínhamos acabado o trabalho. Eu fiquei pouco tempo lá, voltei pra Paris e um dia, de novo, o Caetano ligou, falou com o Rogério e convidou ele pra ir pra L’Escala, na costa espanhola, perto de Barcelona. Tinha alugado uma casa a beira-mar e nós fomos pra lá, por um ou dois meses. Voltando de lá, eu fui pra Inglaterra. Eu vi que era um bom momento pra ficar ali, alugamos um apartamento e fiquei. Comecei a namorar e viver com a Rosa e ficamos três anos e meio ali. No final desse primeiro ano, eu conheci um fotógrafo, grande fotógrafo inglês, que já estava mais velho, estava se aposentando, e em uma conversa eu perguntei pra ele se não queria fotografar um filme que eu queria fazer. Eu frequentava, lá, muito um cinema que se chamava Electric Cinema, um cinema espetacular, uma espécie de cinemateca, que passavam filmes das sete da noite até as sete da manhã. A gente ficava a noite inteira ali vendo filme, tomando ácido… Eu vi uma retrospectiva lá de filmes ingleses e estrangeiros com o tema do estrangulador. Em um dos filmes, era muito interessante que a lente se chamava “Strangloscope” [risos].

Eu fiquei com aquilo e resolvi fazer um filme com aqueles clichês do filme de estrangulador, escrevi um roteiro chamado “Memórias de Um Estrangulador de Loiras” e fui chamar esse fotógrafo pra fazer o filme. Ele tava aposentado e foi muito simpático comigo, me indicou um professor da Universidade de Kensington, Laurie Gane… grande Laurie Gane, o destino sorriu pra ele. Falei com ele e ele falou na hora: “Você não precisa fazer nada, eu tenho negativo, tenho câmera, tenho tudo”. Ele era professor lá, tinha uma sala coberta de negativos 16mm, que eles compravam a toneladas. Foi, realmente, outro homem muito delicado. Ele tinha uma câmera novinha e fez uma tabela de luz… tudo isso se perdeu porque o negativo foi queimado, foi feita uma cópia de cópia, quer dizer, ganhou-se uma outra coisa, mas a qualidade de luz foi perdida. Tinha uma amiga, brasileira, que era secretária do Joseph Losey, que tava fazendo um filme na Inglaterra chamado “The Go-Between”, com uma atriz que tinha ficado muito amiga de alguns brasileiros lá, Julie Christie, era uma atriz inglesa famosa nessa época, que nos convidou pra ir ver a filmagem, fora de Londres, não me lembro aonde era, em um castelo. Nós fomos ver essa filmagem, tava lá o Losey lá, me apresentou, e tava lá uma produção… e eu fiquei vendo, na filmagem, que tinham umas vinte garotas na audiência, todas loiras, e falei pra um amigo que tava junto comigo, Marcos, que morreu: “Pega cinco dessas loiras e vamos fazer o filme”. Eram extras do “The Go-Between”! [risos] Ele chamou, as garotas toparam, foram em Londres e nós em sete, oito dias, fizemos o filme, que era uma repetição de uma mesma coisa: um homem que saía pra estrangular loiras. Começava com uma, passava pra duas, três, até que tavam lá dez de uma vez. Era esse o filme, um ritmo de crescendo e exaustão.

Fiz esse filme e falei com o Laurie Gane, que era um rapaz, professor – que, como tudo na Inglaterra, era uma profissão modesta – e morava num lugar um pouco afastado de Londres, chamei ele pra fazer outro filme, que chamei de “Amor Louco”, “Crazy Love”, que era o nome de um livro do Breton e também de uma música americana famosa, “Crazy Love”. Aí fizemos o filme em preto e branco, uma fotografia em preto e branco genial. Ele pegou os filmes de vanguarda franceses e ingleses do início do século XX e fez uma fotografia em preto e branco, 16mm, em cima daquilo, uma obra-prima de fotografia – que se conservou ainda um pouco, tem uns trechos bons no “Ônibus Amarelo”. Fizemos esse filme e aí eu fui com a Rosa pro Marrocos e lá eu fiz um outro filme, chamado “A Fada do Oriente”. Alugamos uma casa no sul do Marrocos, em um lugar chamado Taroudant. Ficamos lá uns três, quatro meses. Aliás, eu não aluguei, eu comprei a casa e depois o cara me devolveu o dinheiro, como se fosse alugado. [risos] Outro mundo, outra época, um mundo que desapareceu.

Todos esses filmes dependem muito da época, dependem muito do meio em que isso é feito. O hábito é a camisa de força da época. A gente vive segundo um hábito, tem o cabelo mais curto ou mais comprido, a saia mais curta ou mais comprida. É o hábito que te faz ficar igual ou mais ou menos. É quase impossível você sair da camisa de força de uma época. Todos esses filmes tinham a ver com aquele espírito da época. Hoje sobrevive uma outra coisa ali dentro, mas o que levou a fazer isso era também o espírito da época, essa vontade de ser outro, de não querer ser você mesmo, procurar sair de você, da sua insuficiência.

Depois da “Fada do Oriente”, voltei, revelei o filme, montei e fui pros Estados Unidos, em 1972. Fiquei seis meses em Nova York, onde fiz um filme chamado “Lágrima Pantera”, que foi em torno da nossa passagem ali e do local também. Ficamos em um loft que era o ateliê do Hélio Oiticica, que naquela época não era “o Hélio Oiticica”, era o Hélio, que pegou um loft em que não tinha nada, todo mundo ali vivendo num regime quase que de fome, e fez com uns caixotes de madeira, que ele pegou no Museu de Arte Moderna ou em um depósito lá, e fez o que depois chamou de “Ninhos”. Aquele clima, as pessoas que visitavam ali, tinha um bordel embaixo com essas moças porto-riquenhas, esses negros americanos… era um clima de muita permissividade, bastante permissividade naquela época. Tinha uma boate em frente chamada “The Mud”, “A Lama”, que era uma coisa que só naquela época, hoje nem tem mais isso. [risos]

Depois, voltei pra Londres, montei esses filmes, botei em uma arca e mandei pra um depósito. Perdeu-se isso, em 72, 73, por aí. Em 82, eu falei: “Não é possível que isso tenha sido perdido. Eu vou voltar e vou achar isso”. Isso estalou porque eu achei entre os meus papéis um recibozinho do depósito, no Tâmisa. Cheguei lá, mostrei pro cara e ele falou: “Olha, você chegou tarde, tudo que tinha aqui foi pra um outro depósito, não tem nada dessa época aqui”. Mas eu olhei e pensei que isso era um exagero, o depósito era grande demais pra tudo ter ido pra outro lugar. Perguntei onde era a ala marcada no bilhete, ele me indicou, eu fui, a arca tava lá e recuperei esses filmes todos. Foram esses os filmes que eu fiz lá: “O Estrangulador”, “Amor Louco”, “A Fada do Oriente” e “Lágrima Pantera”. Aí, fiz essa viagem do “Ônibus Amarelo” e vim pro Brasil em outubro de 73.

Quando cheguei aqui, no mês seguinte eu fiz um filme, “O Rei do Baralho”, com o Otelo e uma mulher espetacular, uma atriz genial que acabou não florescendo como devia, Marta Anderson, uma atriz com talento de Marylin Monroe, não pela semelhança física, mas por aquele talento inconsciente. Fui com a Rosa assistir a uma peça de teatro de revista, ali perto da Lapa, naquela rua onde tinha o Teatro Rival, haviam vários inferninhos ali. Nós fomos em um e Marta estava lá, fazia uns shows de strip tease. Eu, quando vi, pensei: “Essa vai ser a atriz do filme”. Convidei e ela foi fazer a dupla com o Otelo. Ela era genial mesmo, mas sumiu como atriz. Fiz “O Rei do Baralho”, depois fiz “O Monstro Caraíba” e aí foi…

Minha passagem pela Europa foi isso daí. Muita renovação e também muita dificuldade. Hoje, falando assim, parece que tudo isso foi saindo, mas tudo foi fruto de uma mistura de sofrimento e muita dificuldade – mas a obstinação, a vontade e o desejo foram mais fortes, então eu consegui tocar essa coisa. Todos os filmes, desse último que eu fiz até o primeiro, todos foram muito difíceis de fazer, como produção, tudo, nunca tive facilidade de produção nenhuma.

VD: Desses filmes que você fez, “A Fada do Oriente” foi recuperado também?

JB: Foi, tá no “Ônibus Amarelo”, uma boa parte. Ele foi quase todo recuperado, porque foi filmado em 16mm, preto e branco, e sofreu pouco esmaecimento do negativo.

Falei pra vocês sobre o homem que “o destino sorriu” e interrompi, que foi o Laurie Gane. O Laurie era um professor, um rapaz muito sensível, uma flor de pessoa, um inglês de uma estirpe rara. Cinco anos atrás, seis anos atrás, ele leu um texto de segunda mão, uma espécie de biografia do Nietzsche, fez uma história e deu pra outra pessoa desenhar uma história em quadros do Nietzsche, e publicou. Vendeu oito milhões de exemplares na Inglaterra, doze milhões no mundo. Ficou milionário, só de direitos autorais. Mandou pra mim uma foto de uma casa que ele comprou no país de Gales, uma casa espetacular na beira de um penhasco, e falou pra mim: “O dia que você quiser vem pra cá, que esse é o lugar mais maravilhoso do mundo”. Ficou milionário com um gibi, uma história em quadrinhos do Nietzsche! Que absurdo! [risos] A biografia que ele leu deve ter vendido dois mil exemplares, no máximo! [risos] Então, quer dizer, o destino sorriu pra ele, um rapaz que vivia em Londres com muita dificuldade, com uma bicicletinha a motor que tava sempre dando defeito, comia ali fish and chips… apesar disso, nunca com rancor de nada, sempre sorrindo. Ficou rico com uma história em quadrinhos do Nietzsche. Eu, quando vi aquilo, não acreditei. Mostrei pra Rosa e ela também não acreditou. [risos]

VD: Durante esse tempo em que você esteve em Nova York, você entrou em contato com outros cineastas experimentais, da vanguarda que tava acontecendo ali?

JB: Não, não conheci ninguém nos Estados Unidos, nem na Europa. Pessoas que eu conhecia de cinema eram pessoas antigas, com quem eu tinha relações, dois ou três diretores de cinema que eu conheci logo no início, mas nos Estados Unidos ninguém. Quando eu ouvi falar de Jonas Mekas, já estava aqui há muitos anos, nem sabia quem era. Quer dizer, eu sabia, mas nunca procurei ninguém, nunca tive contato com ninguém de cinema, nada, nada.

Paula Mermelstein: Você teve contato com pessoas de artes?

JB: De artes, conheci algumas pessoas sim. Conheci muito o John Cage, estive muitas vezes com ele, levei o Arto Lindsey e a Rosa na casa dele duas vezes. Conheci o Merce Cunningham. Conheci uma grande escultura, amicíssima do Cage, que fazia as obras dela com material que ela encontrava na rua, Louise Nevelson. Uma mulher que deu uma sorte também, casou-se com um banqueiro e o cara falou: “Faz o que você quiser”. Eu uma vez perguntei: “Onde é que você pega esse material?” e ela: “No lixo”. E ela casada com o milionário… [risos] Conheci o Barnett Newman. Não conheci pessoalmente, mas vi muitas obras do Jasper Johns, do Pollock… era uma overdose de Pollock. Conheci muito esse lado artístico, aquela coisa de arte moderna. Conheci o Ellsworth Kelly. Conheci muito essa gente, mas de cinema ninguém. Quem fotografou o “Lágrima Pantera” pra mim foi o Miguel Rio Branco, que era um fotógrafo e nunca tinha feito um filme. Chamei e ele fez esse filme, em preto e branco e cor.

“Lágrima Pantera” é o verso do Sousândrade: “lágrima / pantera”, as duas imagens do medo, do receio. Eu fiz o filme como uma montagem de duas panteras. Fui montando o “Ninho” e as pessoas em volta; as sombras e o projeto gráfico. Fazendo como se fosse uma montagem de palavras. Uma montagem estranha porque “lágrima” e “pantera” são duas palavras difíceis de botar juntas. O Augusto dos Anjos tem um verso em que fala de “ingratidão”: “a Ingratidão – essa pantera –“. Uma coisa aproximada da outra, uma coisa perigosa, tanto a “pantera” quanto a “ingratidão”; tanto a “lágrima”, que é algo que você faz num momento de euforia ou de dor, e a “pantera” que é uma coisa que você, naturalmente, deve ter medo. Então, eu fiz uma montagem de como se fossem duas palavras que se encontrassem, usando clichês do cinema como plano e contraplano: um plano em preto e branco e o contraplano, com a mesma ação, em cor. Não o mesmo plano com viragem, mas planos diferentes. Foi assim. Botei algumas coisas, algumas cenas com planos ambientes. Tem lá um plano-sequência grande também, que é uma espécie de encenação do crime, revelando o lugar.

Foi um momento de ouvir muita música, tinha muita coisa antiga que tava ainda viva ali. Eu ouvi muito jazz nos anos 70, quando as bandas de rock tavam todas no auge, Grateful Dead, essas coisas. Eu ouvia os grandes músicos de jazz, Thelonious Monk, Miles Davis… um que ficou até nosso amigo, nos convidou a ir na casa dele, Art Blakey, baterista. Milt Jackson. Uma porção de músicos antigos do jazz ainda tavam numa espécie de um último suspiro ali, tocando. Um baterista dos anos 30 que eu conheci foi Cozy Cole. Max Roach. Isso tudo eu assisti na Inglaterra. O Monk nós conhecemos, eu e a Rosa fomos falar com ele. Ele não conseguiu falar, ficou roncando, mas não falava. Conhecemos todos esses músicos antigos e também as bandas novas que tavam ali, sobretudo o Grateful Dead, o Led Zeppelin, o Jimi Hendrix. Ele morava a duas casas além da que eu morava, mas nunca fui vê-lo. O show que ele deu na Ilha de Wight eu não pude ir porque estava na Espanha e não tive como sair pra lá, mas ouvia muito e gostava imenso do Jimi, muito mesmo. Desses de música moderna, é de longe o que eu mais ouvi e o que eu mais gostava.

Nessa época, tinha muita coisa que tava chegando pra cultura, era uma época de certa ruptura de comportamento também. A geração de vocês, do João [Batsow, neto de Júlio], vocês já nem são meus filhos, mas meus netos, já são duas gerações. Houve uma modificação de comportamento, de aceitação social. Vocês têm hoje um outro tipo de ruptura a fazer, não como a daquela época, de costumes e pessoal. Tudo isso permanece, mas hoje se tem um outro horizonte de rebeldia.

PM: Quando você falou sobre o Aby Warburg, eu me lembrei de uma entrevista em que você falava sobre o “Le Déjeuner sur l’herbe” do Manet e em como havia ali um deslocamento sobre colocar uma gravura dentro do quadro, e como você queria fazer algo parecido no “Cleópatra”. Fiquei pensando em como isso também se aplica a vários outros filmes seus, não só quanto a esse deslocamento, mas também no olhar das personagens para o espectador. No “Garoto” você refaz o quadro e parece que a personagem tá sempre não só olhando, mas falando com o espectador também.

JB: O Warburg teve uma leitura erudita do “Le Déjeuner sur l’herbe”. O próprio Manet escondeu e o Warburg viu de onde o Manet tinha não observado, mas copiado o “Le Déjeuner sur l’herbe”, que é de um sarcófago grego que o Rafael viu em uma cópia romana no jardim de um cardeal e fez um desenho em cobre desse sarcófago. Um dos principais discípulos do Rafael – que são dois, o Marcantonio Raimondi e Giulio Romano –, o Marcantonio Raimondi pegou essa cópia em metal e fez uma gravura. Essa gravura ficou famosa porque todos os ateliês de pintura – na época em que existia pintura, ou seja, na pintura de ateliê – copiavam como aprendizado esse desenho, que é justamente o “Julgado de Páris”, que é um julgamento sobre a beleza no ocidente. É a escolha do Páris, o julgamento que ele faz das três deusas. O Marcantonio copiou um detalhe essencial, mas marginal, do sarcófago.

Essa história é o seguinte: há um banquete que Zeus dá pras deusas do Olimpo. Uma havia acabado de ser expulsa, que era Afrodite. A deusa da discórdia, durante o banquete, Éris, pega uma maçã dourada e dá a Zeus, dizendo: “Quero que você entregue essa maçã à deusa mais bonita desse banquete”. Zeus ficou numa situação difícil, porque a quem ele desse essa maçã, as outras deusas ficaram contra ele. Ele chama um mensageiro, Hermes, e diz a ele para ir ao Monte Ida, perto de Tróia, procurar esse caçador, esse pastor desmemoriado – que é um príncipe, Páris, que foi expulso dali – e pede pra ele decidir qual das três é a mais bela. As deusas, quando sabem disso, voam pra lá e o Páris, então, pede para que elas tirem a roupa, porque, para ver a verdade, só nua. Elas tiram a roupa e ele pergunta a cada uma o que poderiam trazer pra ele. A Hera, a deusa do ar, da organização, da administração, oferece isso para ele. Atena oferece a sabedoria e Afrodite, quando chega a sua vez, promete que essa noite, ainda, ele teria no seu leito a mais bela mulher da Grécia, Helena. Páris, então, pergunta o que a Helena tem de bom e Afrodite, que tinha apenas uma fita na cintura – o cestus, uma fita que era usada para evitar o incestus: quem tinha a fita não podia ser possuída por ninguém da família, que era comum que isso acontecesse –, tira a fita e mostras os órgãos. Páris, então, dá a maçã pra ela. Mais tarde, o Freud interpreta, a partir desse episódio, que você só acha belo aquilo que te dá um prazer sexual, a interpretação que ele deu sobre a beleza no ocidente, a partir do Julgamento de Páris.

Nessa gravura, a água que cai do Monte Ida é a mesma água que vai banhar Tróia. Quando acontece esse julgamento, Afrodite ganha a maçã e volta ao Olimpo, voltando a ser deusa. Então, essa água que domina o monte e abastece Tróia é guardada pelos deuses fluviais e é dessa imagem dos deuses fluviais que o Manet tira o “Le Déjeuner sur l’herbe”. Esse desenho era muito copiado nos ateliês e o Manet foi um frequentador de ateliês, era do ateliê do Thomas Couture, ele era um homem de ateliê. Manet pegou a imagem dos três deuses luz e uma mulher andrógina olhando para o escultor, e colocou isso dentro da paisagem francesa, em um bosque. Esse é o arco que o Warburg estabeleceu, de onde vem a primeira formação do “Le Déjeuner sur l’herbe”, que vem de um sarcófago grego. Warburg vê como que isso atravessa todos os tempos na pintura, o que se chama de “imagem dialética”, ou seja, de onde lá distante veio até aqui, os muitos tempos distantes em que isso foi sobrevivendo, a cada intervalo uma sobrevivência. Ele faz todo esse trajeto até o “Le Déjeuner sur l’herbe”. E o Manet deu uma pista errada pra não pegarem ele. Quando vieram criticá-lo, quando o quadro foi rejeitado no Salão, ele disse que não tinha nada de novo naquilo, que mostrar duas mulheres nuas em um bosque era uma coisa renascentista, que era um quadro do Giorgione do “Concerto Campestre”, que tem duas mulheres nuas e dois caras, mas é completamente diferente daquele que ele copiou. [risos]

Essa é a questão. A sobrevivência se deu no quadro do Manet como se deu em todos os quadros que você, de alguma maneira, reproduziu. Como aquilo que sai de um quadro com pinturas a óleo, estáticos, se transformam depois em película em movimento. Isso é uma transposição. O que se deu com o quadro do Manet se dá quando você faz todas essas relações com alguma formação pictórica de um outro suporte. Essa coisa do “Le Déjeuner sur l’herbe” é muito importante, porque ali foi justamente onde o Warburg deu a chave dessas duas coisas essenciais em toda a arte, que são a sobrevivência e o intervalo. A sobrevivência se estrutura no intervalo. A primeira coisa é aqui, a segunda é ali; de lá pra cá, houve um intervalo, então se estruturou essa nova sobrevivência, o gesto passou de uma coisa a outra. Isso vem desde sempre e o Warburg localizou as primeiras pegadas que vêm até aqui, o que o Walter Benjamin chama de “imagem dialética”, uma coisa distante que chega até agora e que você é capaz de ver essa trajetória de tempos múltiplos como se fosse uma constelação em que cada estrela está localizada em um tempo diferente.

[Bressane nos mostra a primeira edição da Mnemosyne e comenta algumas das suas placas]

JB: Isso tudo é uma montagem serradíssima. Uma imagem está ao lado da outra nem sempre por um motivo visível, mas implícito. O Warburg tinha uma crença generosa nas pessoas, ele acreditava que, além dessa montagem, poderiam haver outras. Imagina, ninguém nem conseguiu chegar a essa, imagina a outras. Mas ele acreditava no homem. Era uma falsa crença, mas ele acreditava que o homem era possível, poderia ser sensível ou alguma coisa, coisa que não é.

O Warburg incluiu aqui a controvérsia também. Ele encontrou a mesma tipologia, entre o “Le déjeuner sur l’herbe” e o Rafael. A mesma posição, a mesma disposição dos corpos. Mas ele descobriu antes e inseriu também aqui o que parece ser outra cópia, em um quadro holandês do século XVII, que também tem o mesmo motivo. Todos têm o mesmo motivo das mulheres em um campo, mas esse aqui, do Giorgione, é que foi o desvio que o Manet quis fazer. É o mesmo motivo, mas a disposição dos corpos é completamente diferente. Como as pessoas, até hoje, são mais atentas ao entrecho do que à coisa, o Manet deu o entrecho: “duas mulheres nuas num campo, com dois rapazes – isso é o Giorgione”. Sim, esse é o entrecho, mas não é a mesma coisa. Até hoje, se observa sempre o entrecho, o enredo, a história, quando numa imagem isso passa para um segundo plano; o primeiro plano é a própria paisagem, que é a natureza diretamente, sem transparência.

Na Mnemosyne, existem todos os tipos de associação de imagens, em torno da questão do gesto. O Warburg viu que o gesto de uma campeã de golfe, com um taco, é o mesmo gesto da bacante, quando vai cortar uma cabeça. Ele pegou o livro do Darwin sobre as feições e foi juntando os mesmos gestos, gestos pré-históricos que sobreviveram até hoje.

Chegou ao ponto em que, no final, ele fez uma que era contemporânea. Houve uma época em que o Vaticano fez um acordo com o governo do Mussolini, que daria as terras ao Vaticano, mas a Igreja teria de abrir mão do controle espiritual sobre as pessoas, que aceitou isso. O Warburg achou isso a destruição da Igreja, dizendo que nunca nenhum poder terreno teria sobre ninguém a força de um poder espiritual, ou seja, o poder espiritual tinha desde que o homem existe, de quando tinha medo do trovão, até hoje, enquanto as forças de poder são sempre uma coisa episódica. Então, o Warburg botou todas as fotos do Vaticano, das colunas, e da assinatura desse contrato que o Vaticano fez com o governo do Mussolini. Embaixo, nessa mesma Mnemosyne, ele colocou uma notícia de jornal sobre um desastre de trem, com uma foto de um dos sobreviventes agonizando e pedindo um padre, segundo a manchete. Ele colocou dentro da Mnemosyne, mostrando “Isso é o que a Igreja tá perdendo”, quer dizer, o homem na hora da morte, naquele final, chama um padre, então ele tinha a força espiritual dentro dele. Isso é o que a Igreja tá abrindo mão por causa de uma terra.

O Warburg foi até o final com essa coisa. Essa combinação do “Le déjeuner sur l’herbe” é a mais visível, mas ele faz associações que estão mais dentro da língua da imagem, mostrando inclusive a ligação da retórica com a imagem, porque tudo o que você vê é alguma que você conhece e, se você conhece, é pela retórica. Foi a retórica que criou as figuras de sintaxe, todas as figuras de linguagem foram criadas pela retórica, e a mesma coisa na pintura. Algumas coisas não estão ali, mas estão na linguagem da pintura. Então, por exemplo, não aparece o sujeito pedindo o padre, mas junto da palavra se mostra o que se está perdendo ali, é algo que não está na imagem, mas que está relacionado a ela.

Então, é uma grande charada isso aqui. Como diria o velho Fernando Pessoa, é uma “charada sincopada, que ninguém na roda decifra nos serões de província”, entendeu? [risos] Isso aqui é muito difícil e exige uma leitura, um afinco de imagens muito grande pra você poder entrar na montagem de cada um, no por que de algo estar ali, o que une uma coisa à outra. Não tem uma coisa só, são muitas coisas, são muitas sugestões, muitas relações, intrarrelações, quase que infinitas.

GLF: Quando você teve contato com a Mnemosyne pela primeira vez?

JB: O Warburg foi traduzido pro ocidente em 92, os “Ensaios Florentinos”, saiu em francês. Eu li no Magazine Littéraire, uma revista francesa, uma matéria sobre o Warburg, já não me lembro quem foi, acho que foi o [Giorgio] Agamben. Ele tava fazendo uma pesquisa na biblioteca em Paris sobre o Benjamin e encontrou lá algumas coisas do Warburg, que ele nem sabia quem era. Ele copiou e foi feita uma edição em 92, 93, com os “Ensaios Florentinos”. Eu vi no Magazine Littéraire uma menção anterior a esse trabalho. Eu estava fazendo o “Sermões” e fiquei muito impressionado com isso, tanto que já procurei algumas coisas assim, como a reprodução da Venus, mas muito ainda incipiente, porque eu não conhecia ainda a coisa, tive uma intuição só. Isso foi em 88, 89. Pra poder entender isso eu li uns dez livros sobre, porque de cara eu não tinha nem condições, nem cultura pra compreender isso. Mas li o Edgar Wind, o [Erwin] Panofsky, o [Raymond] Klibansky, o Fritz Saxl,a própria Gertrud Bing, a secretária do Warburg, que foi a mulher que salvou isso daí.

Então, eu li esse pessoal todo, pegando as dicas de como que lia esse projeto da Mnemosyne, que ele não terminou. Ele teve um ataque cardíaco em 1929, ia fazer uma grande conferência pra mostrar a Mnemosyne dentro de um seminário que ele tava fazendo sobre a cultura da Renascença, mas morreu. O Warburg teve uma maldição, porque ele era um homem muito rico, a família dele era, até hoje, uma família de banqueiros, um dos bancos mais poderosos do mundo, o Warburg Bank. Ele abandonou, deixou pros outros cinco irmãos a responsabilidade financeira, contanto que eles pagassem para ele os livros que ele comprasse. Ele construiu uma biblioteca extraordinária e foi fazendo, até fazer isso aí. Ele entendia que essa montagem fosse uma filosofia, uma história do pensamento sem palavras. Chegou a preparar 79 dessas pranchas e morreu. Era muito rico e comprou um hotel em Roma, um hotel de três andares, e se instalou lá. O escritório dele tinha quarenta mil livros.

O que mudou um pouco a vida do Warburg foi que ele veio à América em 1896. Ele fez uma viagem aos índios Hopis no México e lá ele mudou a cabeça dele. Quando ele viu aquilo, ele falou: “A Renascença começa aqui”. Aí ele fez essa biblioteca, porque ele ficou muito impressionado com o ritual da serpente, e ele viu as casas dos hopis, que moravam no deserto, em umas rochas, uns buracos, e em algum desses buracos tinha um furo e, embaixo, tinha uma espécie de um pátio fechado dentro da pedra, que eram os altares. Ele ficou muito impressionado com isso porque, em qualquer lugar em que você sentava, você via o altar inteiro, como se fosse uma ferradura. Ele fez a biblioteca dele nesse mesmo modelo, em que de um ponto você via todos os livros, que eram sessenta mil quando chegou na Inglaterra. Agora, eram em prateleiras e ele achava que, em cada época, um livro devia estar em alguma prateleira diferente: por exemplo, com um livro de biologia do século XVI, ele achava que hoje era um livro importante de poesia, então ele tirava da biologia e botava na poesia. Ele fazia essas montagens.

Isso foi um problema muito sério, porque era uma biblioteca cara, em que você tinha que ter um sistema de telefone pra orientar as pessoas sobre onde deveria procurar as coisas – algo com que o Ernst Cassirer, quando foi lá, ficou muito impressionado. Então, quando o Warburg terminou a biblioteca e morreu, o nazismo tomou conta da Alemanha e tava certo que eles iriam lá e destruiriam a biblioteca, ele sendo judeu. A família do Warburg, sabendo do que que tinha ali, comprou um navio de carga e adaptou pra transportar a biblioteca, botou ela dentro do navio e mandou pra Inglaterra. Um mês depois, a Gestapo foi lá procurar onde tavam os livros, porque queriam queimar tudo; não encontraram mais nada e destruíram a parte interna do prédio. Esse material chegou na Inglaterra durante a guerra e não se sabia quem era o Warburg, um milionário excêntrico, louco, que tinha passado seis anos no hospício em Kreuzlingen, como paciente do [Ludwig] Binswanger – o tio do Binswanger foi quem cuidou do Nietzsche.

Então, o Warburg era tido como um milionário, erudito, tinham sessenta mil livros e ninguém sabia pra que que isso serve. Pegaram e botaram dentro da biblioteca da Universidade de Londres, ficou estacionado ali por trinta anos. No final dos anos sessenta, a universidade, com a Inglaterra já mais recuperada da guerra, resolveu fazer uma investigação sobre o que que eram aqueles livros e descobriram que a biblioteca do Warburg era maior do que a universidade. Então, eles falaram: “A gente não pode botar isso lá; ao contrário, nós é que temos que ir pra lá”. Mais tarde, eles junto com esse Courtauld, fizeram o “Warburg and Courtauld”. A pouco tempo, a alguns anos atrás, eu ouvi que dizer que iam fechar a biblioteca do Warburg, porque não tinha mais aluno. Era uma manutenção cara, porque são muitos livros, precisa de todo um sistema de refrigeração, de comunicação por telefone, e não tinha aluno. Tem uma produção de estudos de arte que é a maior do mundo, o maior centro de estudos de arte do mundo tá lá. Edgar Wind foi quem tomou conta daquilo, o maior discípulo do Warburg é o Wind. Ninguém tá interessado nisso, são estudos muito difíceis de se fazer, então tá meio abandonado isso lá.

MZ: Essa questão da retórica para a imagem, que você comenta na Mnemosyne, me lembra de algo que você fez e que eu gosto muito no “Brás Cubas”, que é o “necrofone”.

JB: O “necrofone” é uma interpretação de uma coisa que eu já tinha feito antes e que, todas essas três cenas anteriores ao “necrofone” tão no “Ônibus Amarelo”. São cenas que eu fiz em um filme chamado “Viagem Através do Brasil”, em 74 e, depois, em 75, em Machu Picchu. É o princípio de você buscar o som onde ele não tem mais. Eu fiz uma cena com o microfone passando por uma pedra em cima dos sinais rupestres, porque o sinal você sabe o que é e até o sentido que ele possa ter, o que não se sabe, e isso tá perdido para sempre, é o som daquilo, como que se chamava aquele sinal. Isso não tem mais. O “necrofone” é um pouco isso. Você se lembra do princípio do livro, “Ao verme que roeu as frias carnes do meu cadáver”, ou seja, já não tem mais voz, ficou o esqueleto nu ali. Então, por isso o “necrofone”, o microfone desce pra procurar o som onde não tem mais som, não tem mais voz, é um esqueleto. Não morreu completamente. O Lacan tem uma tese que diz que o homem só morre quando acaba o osso dele: o último tropeço do nome é no osso. Enquanto tiver o seu osso, você também tá vivo. O último tropeço que o seu nome sofre, é no osso. Depois do osso, acabou. Então, o microfone desce até o osso, o esqueleto ainda tá ali, mas não tem mais a voz, essa parte já foi. Então, essa é que a ideia do “necrofone”. É uma ideia do Machado de Assis e, justamente, é no início do filme, porque ele bota isso na epígrafe do livro, “Ao verme que roeu as frias carnes do meu cadáver, eu dedico essas saudosas memórias”. Então, é uma coisa que já não tá mais ali. Essa é a interpretação que eu fiz na imagem e criei essa imagem do “necrofone” pra traduzir essa coisa intraduzível, que é o texto do Machado de Assis, sugerir uma coisa que é intraduzível. Essa que é a questão do “necrofone”.

Rio de Janeiro, 23 de abril de 2023.

2 comentários em “Conversa com Júlio Bressane (I)”

Os comentários estão encerrados.