A besta deve morrer

Este texto não teria sido possível sem as incontáveis conversas com Paulo Martins Filho e sem os diálogos com alunos e alunas do curso sobre Jacques Tourneur, ministrado em abril de 2022.

Quando diante de The Leopard Man (1943), de Jacques Tourneur, revisões se somam a revisões e o filme, incansável, resiste. A cada nova visão, basta um detalhe – um objeto ou um movimento de câmera – para que nosso olhar seja deslocado e conduzido a leituras sempre renovadas e insuspeitadas. Filme-arquitetura, em que o edifício formal é construído por cenas-tijolos que funcionam como esquetes, ele nos obriga constantemente a rearranjá-lo, reconfigurá-lo ou reorganizá-lo de acordo com os pormenores da argamassa: são esses pormenores – dramáticos, narrativos, formais – que permitem, de The Leopard Man, que se leia como um filme ao mesmo tempo sobre a culpa, a barbárie, as falsas aparências, o Mal, o animalesco, as instituições, o classismo, o recalque, a noite, o pacto social… Raros são os filmes que, absolutamente concentrados como este, conseguem abrir um leque tão expressivo de interpretações. Pois é esta, afinal, a contribuição decisiva dos filmes de Jacques Tourneur e Val Lewton para a história do cinema: em Cat People (1942), I Walked With a Zombie (1943) ou The Leopard Man, as imagens nos convidam a penetrar em suas sendas para que possamos decodificá-las de dentro. Decifra-me ou te devoro.

Em The Leopard Man, Tourneur prefigura e radicaliza a estrutura aberta de sua outra obra-prima, Canyon Passage (1946). Trata-se de filmes sem protagonistas claramente definidos, com figuras transitórias e situações narrativas passageiras. Uma espécie de falta de foco caracteriza a construção dessas obras, em que passamos regularmente de um personagem a outro até que, eventualmente, retornamos a esse personagem que havíamos abandonado. São filmes coletivos em que o tema da comunidade se manifesta formalmente. Encontros e desencontros pontuais, associações arbitrárias, caminhos que se cruzam inesperadamente, fragmentos de uma jornada individual e comunitária: é essa rede de confluências que determina a arquitetura aberta dos filmes. Se o personagem de Dana Andrews pode ainda ser considerado o protagonista de Canyon Passage, o mesmo já não pode ser afirmado com clareza em The Leopard Man. Quem é o personagem principal deste terceiro fruto da parceria entre Tourneur e Lewton na RKO?

A escolha de um protagonista influencia a nossa leitura da obra: se se trata de James Bell, o museólogo responsável por duas das três mortes do filme, estamos diante de uma obra sobre as “forças que nos movem” e das quais conhecemos tão pouco; se escolhemos Dennis O’Keefe como personagem principal, o filme se torna uma narrativa de investigação; se elegemos, por outro lado, a comunidade daquele vilarejo do Novo México como protagonista coletivo, The Leopard Man se converte em um filme sobre a culpa histórica calcada em um processo violento de colonização. Para Tourneur, curiosamente, a protagonista de seu filme é a cartomante que sela o destino das personagens nas cartas. Neste texto, o que eu quero é propor que, se há uma personagem principal em The Leopard Man, esta só pode ser a Clo-Clo interpretada pela atriz mexicana Margo, a partir de quem o filme concebe sua arquitetura formal.

Após os créditos, o primeiro plano do filme nos dá a ver a porta aberta de um camarim iluminado. Estamos do lado de fora, em um cômodo ligeiramente escuro, onde sombras da janela se formam ao lado do batente. Sons de castanhola invadem a imagem enquanto a câmera se aproxima da porta. Performando com suas castanholas para si mesma e para nós, Clo-Clo se materializa, de costas, dentro da moldura do umbral. A câmera, que avançava lentamente na direção do camarim, muda de rumo abruptamente e realiza uma pan para a direita: no cômodo ao lado, a personagem de Jean Brooks, chamada Kiki, bate na parede contígua para reclamar do barulho das castanholas. Ela caminha na direção da câmera e fecha a porta sobre nós. No plano seguinte, o filme já se esqueceu de Clo-Clo: estaremos dentro do camarim de Kiki, onde o filme começará a desenvolver a sua narrativa.

A princípio anódino, este movimento brusco de câmera, que abandona Clo-Clo para enquadrar Kiki, sintetiza o movimento dramático e formal de The Leopard Man. Clo-Clo, estigmatizada pela maldição do Ás de espadas (a carta da morte) arrematado pela cartomante, é a grande agenciadora do Mal: das três vítimas do filme, dentre as quais se inclui ela própria, as duas primeiras pagam o preço de ter cruzado com Clo-Clo em algum momento de suas trajetórias. No primeiro caso, o da menina que sai à noite para comprar farinha, o filme desloca o ponto de vista de Clo-Clo para a criança no momento em que a dançarina, caminhando na rua, passa por debaixo da janela onde a menina observa a rua. A dinâmica é semelhante àquela da cena de abertura do filme: de Clo-Clo, no caso, passamos à menina, que fecha a janela sobre a câmera para que, na próxima cena, estejamos já dentro de sua casa, acompanhando suas ações (como acontecia no camarim de Kiki). No segundo caso, o da jovem mexicana que é assassinada no cemitério, anteriormente a vimos recebendo flores de uma mulher que cruzou com Clo-Clo na floricultura. Nesta cena, o filme novamente transfere o foco de Clo-Clo para a personagem com as flores, e o buquê se torna o objeto pelo qual a maldição de Clo-Clo é repassada. O filme, como se vê, é rizomático, ou seja, espalha-se como ramos de uma raiz: ele escorre, reverbera e vaza como o sangue da menina que, no tablado frio, surge por debaixo da porta. Clo-Clo é a raiz que sustenta esses ramos, e é através dela que se espalham. Ela é a liga, a sustentação, o alicerce da construção do filme: é ela quem determina o percurso dos encontros e, consequentemente, a transição dos pontos de vista. Ela é a personagem central responsável por disseminar o Mal do qual o destino lhe fez vítima. Se é verdade que ela é culpada, no início do filme, por ter assustado o leopardo e fazê-lo fugir, ocasionando a morte da menina (e sabe-se como, neste filme, todos são culpados por alguma coisa), não podemos julgá-la culpada por funcionar como este vetor quase epidêmico da própria maldição, a qual ela desconhece ou ignora. Clo-Clo é uma força transbordante que, do interior do filme, irradia. Quando ela é assassinada, o filme pode se encaminhar para uma conclusão: é a imagem assombrosa do cigarro que, prestes a terminar de queimar, testemunha as sombras e os gritos da morte. Este plano rápido e fulminante não é apenas a imagem de uma vida que aos poucos se esvai, tal como a fumaça do cigarro quase apagado, mas é também a conclusão simbólica do filme e da maldição que o consome de dentro.

Clo-Clo deve morrer. E deve morrer, nesse caso, não somente porque é o ponto de onde irradia a maldição, mas porque é uma personagem revolucionária. Do ponto de vista de sua caracterização na economia ideológica hollywoodiana, Clo-Clo é imoral: é uma gold digger autônoma que não se enquadra ao padrão compulsório de feminilidade. A desenvoltura corporal de Margo, a atriz, é absolutamente reveladora da expansividade da personagem, que transita pelas ruas do vilarejo e pelas sombras como se escapasse das luzes definidoras ou dos lugares comuns. Que a maldição seja transmitida para uma menina inocente e para uma jovem mexicana prestes a se casar são detalhes que confessam o perigo de sua imoralidade no contexto da comunidade em que vive. Já de um ponto de vista formal, Clo-Clo é a peça principal da arquitetura esparramada do filme, ou seja, é a responsável pelo descentramento da narrativa e pela profusão de pontos de vista. Se The Leopard Man é um filme formalmente inovador, pela maneira como concebe as imagens e situações dramáticas enquanto rizomas, isto só é permitido porque a personagem é o vetor dessas mudanças de direção. Ela é o coração que faz o sangue circular por entre os encontros contingentes, prefigurando a Vanda Duarte de No Quarto da Vanda (2000)  – que pode, aliás, ser lido como um remake do filme de Tourneur: em ambos, não só uma comunidade ameaçada pelas forças intermitentes do fora de campo como também uma mesma estrutura rizomática encarnada nas perambulações da protagonista feminina.

Talvez Hollywood, em pleno Código Hays, não estivesse preparada para Clo-Clo e, consequentemente, para The Leopard Man É preciso, no final do filme, restaurar a ordem vigente: a besta deve morrer. Clo-Clo não foi a primeira a ser punida pela insubordinação ao modelo conservador de feminilidade e certamente não foi a última. O que é interessante, no caso, é como sua insubordinação e desenvoltura afetam a construção formal do filme. No terceiro e último ato, após a morte da personagem, a estrutura rizomática cede lugar a uma disposição mais convencional dos elementos – a ordem é restaurada. Engana-se, portanto, quem acredita que a anomalia de The Leopard Man é o museólogo com sede de aniquilação, pois, no cinema de Tourneur, a morte nunca é excepcional; pelo contrário, ela é uma parte integrante e inevitável da sociedade em que vivemos (daí o horror). Neste quadro, o anômalo, o patológico e o aberrante não competem ao museólogo, mas a esse “monstruoso feminino” cuja potência arrisca devorar a todos e ao filme.

Em Cat People, Simone Simon também era sacrificada no desfecho da narrativa: resistindo às categorizações fáceis e aprisionadoras, ela era uma potência revolucionária que precisava ser enjaulada ou, neste caso, abatida. Neste filme, porém, éramos deixados com as palavras de seu ex-marido, que revestiam a protagonista de uma transparência trágica: a mulher-pantera, ele diz, nunca mentiu sobre a própria condição. Em The Leopard Man, por outro lado, Clo-Clo é simplesmente tragada pelo vazio, aspirada para o fora de campo, onde seu assassinato deixa um rastro de sombras na imagem. Agente de uma violência centrífuga que escoa na direção de todos, a personagem é vítima de uma violência tão mais afunilada quanto implacável. Por ser o espaço privilegiado da morte em The Leopard Man, o fora de campo é o destino de Clo-Clo. Relegada à margem da imagem (e da sociedade), ela já não oferece nenhum risco. Condenada à extinção, sua influência sobre a forma do filme é desnudada e anulada. Depois de sua morte, não veremos mais Clo-Clo e ela sucumbirá à amnésia narrativa, tornando-se apenas mais uma vítima. O que não apaga, nas revisões de The Leopard Man, o vigor irradiante de sua personagem.

Luiz Fernando Coutinho