Pacto (nada) sinistro

Um Crime Perfeito (Andrew Davis, 1998) é uma refilmagem de Disque M para Matar (1954), de Hitchcock. Esse thriller quase anônimo é estrelado por Michael Douglas, Gwyneth Paltrow e Viggo Mortensen. Embora tenha sido lançado no mesmo ano que o remake homônimo de Psicose (1960), suas premissas e termos não poderiam estar mais distantes do projeto de Gus Van Sant. Filmes hitchcockianos como Um Crime Perfeito, O Suspeito da Rua Arlington (1999), Revelação (2000) ou Plano de Vôo (2005) – para me restringir ao período em questão – nos fazem pensar nas “máquinas anônimas” cujo funcionamento o crítico Nicolas Saada entreviu na série James Bond: filmes sem identidade que produzem “um número espantoso de ideias de cinema, sem efeito de assinatura, sem a sombra de uma ‘personalidade’ no comando”. Estamos distantes, nesse caso, do exibicionismo autoral de outros hitchcockianos como De Palma, Verhoeven ou Fincher. 

A narrativa de Um Crime Perfeito, substancialmente diferente de Disque M para Matar, mantém, contudo, uma estrutura de base: a do marido que planeja o assassinato da esposa depois de descobrir que ela está traindo-o com outro homem. Entre as modificações feitas em relação ao filme original, a mais sensível é a que diz respeito ao amante. Se no filme de Hitchcock este cumpria a função de investigador que juntava as peças do quebra-cabeças e salvava a personagem de Grace Kelly da pena de morte (tratava-se, na ocasião, de um escritor de histórias policiais), aqui ele é o próprio vetor que, chantageado pelo marido da protagonista, deve levar a cabo o assassinato da mulher. Assim, o marido Steven (Michael Douglas) firma um pacto com o amante David (Viggo Mortensen), que é encarregado da tarefa de matar Emily (Gwyneth Paltrow). 

O deslocamento não é tão simples. O amante no filme de Hitchcock, interpretado por Robert Cummings, era um escritor bem-sucedido. Já o assassino contratado, interpretado por Anthony Swann, era um trapaceiro que seduzia mulheres ricas para roubar seu dinheiro. Em Um Crime Perfeito, a personagem de Mortensen amalgama essas duas: é ao mesmo tempo amante e impostor. É com essa informação em mãos – a de que se trata de um farsante – que Steven, o marido, chantageia David. Mais do que uma oposição moral, o que separa as duas personagens é, mais fundamentalmente, a classe social. Um Crime Perfeito, diferente de seu precursor, faz uso amplo de externas (Disque M para Matar, adaptado de uma peça de teatro, trabalhava com códigos teatrais e utilizava um apartamento como locação principal). São essas externas que permitem ao filme solidificar a oposição entre o apartamento de luxo do casal principal – Steven é investidor de Wall Street e Emily, herdeira – e o ateliê do amante, que trabalha como pintor no bairro popular do Brooklyn. 

O rebaixamento de classe social do amante tem consequências mais e menos óbvias. Por um lado, Emily parece projetar no amante não mais do que a possibilidade de satisfazer um desejo perverso ou de mitigar uma certa má consciência de elite. Tanto os planos da personagem no metrô, a caminho do ateliê, quanto o presente que ela dá a David na sequência (uma cafeteira que, nas palavras dela, traz “um pouco de civilização” para o espaço) testemunham dessa má consciência ao mesmo tempo parasitária e narcísica (“David só se interessa por pintura e por mim”, confidencia Emily a uma amiga no início do filme). Pelo lado do marido, Steven também instrumentaliza o amante pobre, chantageando-o para cometer o assassinato da esposa. O filme parece insinuar, em um primeiro momento, que as classes populares são diretamente afetadas pelas crises conjugais dos ricos – o que não significa inocentar David. 

Ainda não arranhamos, entretanto, o essencial da modificação do estatuto do amante. Para começar a cercá-la, é preciso esmiuçar os termos da crise conjugal. Em Disque M para Matar, o marido interpretado por Ray Milland agia por vingança (pelo adultério) e por cobiça (pela herança da esposa). Steven age pelas mesmas razões, mas a elas se soma um motivo incontornável: enquanto não encontrávamos, no filme de Hitchcock, um elemento que apontasse para uma crise financeira do marido, aqui é explicitado que os negócios de Steven em Wall Street estão em baixa. Poderíamos concluir, de forma pragmática, que o colapso econômico do marido é um fator decisivo para sua decisão de assassinar a esposa herdeira (trata-se de uma tentativa de reaver o dinheiro perdido), mas o filme nos sugere que a relação entre as duas crises – financeira e conjugal – é mais nuançada. 

No início do filme, uma montagem paralela alterna dois espaços e duas situações: Steven em seu escritório, lidando com o desabamento de seu império econômico, e Emily e David no ateliê, transando entre as obras de arte. Se é característico da montagem paralela a convergência entre os dois pólos de tensão, o mesmo se verifica aqui. No desfecho da sequência, Steven liga para o ateliê e deixa um recado na secretária eletrônica, que é ouvido pelos amantes na cama (voltarei a essa configuração triangular). Ecoando uma na outra, as cenas em paralelo começam a definir os contornos da crise – a verdadeira crise – de Steven. Comportando-se como um espécime perfeito da linhagem hitchcockiana, o marido interpretado por Michael Douglas reage diante da ruína de seu papel masculino na ordem patriarcal. 

As palavras de Tania Modleski sobre Um Corpo que Cai – filme que consiste na “crônica das dificuldades de Scottie para reafirmar uma virilidade perdida na sequência de seu fracasso como representante da lei” – descrevem com precisão a série de personagens hitchcockianos assombrados pelo fantasma da castração feminina. Steven pertence a essa série, e seu plano desde o início do filme responde à tentativa de reconquistar seu lugar no patriarcado, isto é, de recuperar um mínimo simulacro de controle na ordem simbólica. Que a personagem seja interpretada por Michael Douglas, que nas décadas de 1980 e 1990 constantemente repercutiu esse papel – em filmes como Atração Fatal (1987), Instinto Selvagem (1992), Assédio Sexual (1994) ou mesmo Vidas em Jogo (1997) – não é um detalhe qualquer. Um Crime Perfeito parece uma continuidade lógica na filmografia do ator: trata-se, aqui, da tentativa de recobrar uma posição simbólica masculina seguidamente ameaçada pelas mulheres. 

As justificativas para a crise de Steven são rastreáveis. Se a montagem paralela citada acima é um momento fundamental do filme, é porque ela explicita a relação entre os declínios conjugal e econômico. Pois Steven não ressente apenas o fato de estar sendo traído – ele ressente, mais profundamente, a queda de sua posição simbólica de provedor. Se ele arquiteta um plano para assassinar a esposa, não é tanto porque ela está somente transando com outro homem, mas porque a recessão econômica de seus negócios o levaria a ser sustentado pela mulher. É preferível à personagem masculina planejar o assassinato da esposa para adquirir a herança do que arrogar o papel – historicamente feminino – de figura socorrida financeiramente pelo cônjugue. David, nesse sentido, é como um espelho do emasculado Steven, o fantasma de um devir, pois o que o marido parece vislumbrar no amante, em última instância, é seu destino de homem pobre usufruindo o dinheiro da mulher rica. 

A retomada da posição simbólica de Steven não é uma operação restrita ao assassinato. Ao longo da narrativa, o filme destila pequenos gestos que proclamam esse trabalho perverso de recuperação de um simulacro de domínio. O vestido que o marido escolhe para a esposa, as pequenas armadilhas plantadas, as surpresas e sustos recorrentes, entre outros, relacionam-se com essa tentativa de simultaneamente minar o controle da esposa e readquirir uma ilusão de poder. Entre essas estratégias, destaca-se com mais proeminência aquela do gaslighting, que atende à agenda de confundir, desorientar e manipular a mulher. Se o gaslighting é uma violenta interrupção do acesso da mulher à linguagem (as palavras são de Hélène Frappat), começamos a entender a insistência do filme em diálogos ambíguos e jogos de duplo sentido. Em muitos casos, o sentido imediato de uma fala é plenamente acessado pelas personagens, mas por trás dela esconde-se um sentido oculto (ou antes uma polissemia) que é restrita aos homens. Quando Steven conta a Emily, por exemplo, que visitou o ateliê do pintor e lhe “fez uma oferta”, a esposa assume que ele está falando de um quadro. A oferta, como sabemos, dizia respeito ao seu assassinato. 

Manter a mulher à margem do conteúdo polissêmico da linguagem torna-se, para o homem, uma ferramenta para controlá-la. Na segunda metade do filme, vemos Emily devolver certas linhas de diálogo a Steven, revertendo seu sentido e confrontando-o com suas próprias palavras. A dinâmica assemelha-se ao desfecho de Gaslight (1944), de George Cukor, onde Ingrid Bergman se recusava a libertar o marido – que durante a narrativa quis fazê-la acreditar que estava louca – sob a desculpa de que havia “enlouquecido”. A postura de Emily diante do marido encontra ressonância com a crescente da personagem na narrativa: é nesse momento que ela começa a seguir o dinheiro, a assumir a posição de investigadora. 

Em Disque M para Matar, essa posição era ocupada pelo inspetor interpretado por John Williams. Aqui, a função do detetive (David Suchet) é outra: no drama da linguagem encenado pelo filme, ele é o único que consegue estabelecer uma conexão com a vítima, lançando mão de uma linguagem secreta, privada, restrita. Emily, que trabalha como diplomata, sabe falar a língua do detetive de descendência árabe. A primeira troca de palavras em outra língua – um diálogo solidário a respeito da família do detetive – acontece na sala do interrogatório, local onde Steven, sentado ao lado de Emily, insiste em responder as perguntas por ela. As falas insistentemente talhadas pelo marido são contrapostas, no campo simbólico, à conversa íntima entre Emily e o detetive, inacessível aos demais participantes do interrogatório. Essa conexão inicial é fundamental, pois dali em diante será a mulher quem tomará as rédeas da investigação. 

O filme não pode, entretanto, permitir à personagem feminina o pleno usufruto de sua agência. Há algo de perturbador na cena em que Emily, aparentemente ciente do fato de que Steven foi o responsável pelo plano que quase a matou, confronta o marido no escritório em Wall Street. O início da cena segue a lógica das inversões irônicas: em vez de ser surpreendida por Steven, é Emily quem surpreende a personagem masculina; em vez de ser mantida à margem da polissemia da linguagem, ela retorna contra o marido linhas de diálogo que ele já havia usado na narrativa. Vemos germinar a semente de uma subversão. O que segue, entretanto, é a regressão da personagem feminina à sua posição inicial: Steven volta a manipulá-la e destituí-la de seu poder, desta vez apelando para a culpa de Emily em relação ao adultério. À mulher não é outorgado o direito de desmascarar seu algoz: será mais razoável, perante a misoginia que preside a narrativa, que a descoberta do crime seja efetivada em uma cena posterior, que enfatiza não a justeza da percepção feminina, mas o erro masculino. Depois de assassinar David, Steven retorna para a casa levando consigo uma caixa de sapatos com dinheiro e uma gravação incriminadora. Ele guarda o dinheiro e a gravação no cofre, mas comete o equívoco de deixar a caixa de sapatos à vista. 

O desfecho não é totalmente desprovido de interesse. Enquanto o marido está no banho, Emily percebe a caixa vazia e intui que seu antigo conteúdo está depositado no cofre – do qual ela sabe a combinação. Aqui, o filme espelha uma cena anterior, na qual Steven havia surpreendido a esposa no horário de almoço. Sabendo que ela tinha um encontro marcado com David, e que ela tentaria encontrar formas de ligar para o amante avisando do almoço surpresa com o marido, Steven deixa o celular em cima da mesa do restaurante enquanto se dirige a outra mesa para cumprimentar alguns amigos. A cena montada por Steven se torna uma espécie de armadilha, uma cifra do gaslighting. O olhar de Emily em direção ao celular, o impulso – não efetivado – de pegá-lo, ressoa no olhar da personagem em direção à caixa de sapatos. Desta vez, ceder ao impulso significa acessar a verdade. 

Há ainda outro espelhamento de interesse. Descrevi, acima, a montagem paralela que opunha Steven no escritório e os amantes no ateliê. Ali, a voz de Steven invadia o espaço dos amantes através da secretária eletrônica. Mais adiante, vemos uma triangulação semelhante na cena da tentativa de assassinato, pois nela o marido é novamente posicionado ao telefone. Em ambos os casos, o marido faz (literalmente) a ligação entre um espaço e outro, uma situação e outra. O que difere as duas cenas é, evidentemente, o conteúdo da ação: se no primeiro caso os amantes transam, no segundo eles tentam matar um ao outro. (Não importa, nesse caso, que o agressor não seja David, pois só descobrimos essa informação posteriormente). Na medida em que uma cena espelha a outra, sugere-se uma ligação sutil entre o sexo e a morte – tema central não somente em Disque M para Matar, mas na obra de Hitchcock como um todo. 

Se o espelhamento surge como recurso formal – sobretudo pela montagem e pelo roteiro –, ele também aparece como recurso cênico. Em um plano central do filme, vemos Steven surgir por trás de Emily no closet do apartamento. Seu reflexo no espelho, entretanto, é duplicado, insinuando uma multiplicação da figura masculina. Podemos ler essa duplicação de duas formas. Por um lado, ela denota a instabilidade da identidade masculina da personagem (cindido entre as crises já citadas); por outro, ela sugere que Steven não age sozinho na economia patriarcal. O segundo reflexo, o outro Steven, é principalmente David, mas também outro homem, qualquer homem. Não coincidentemente, o roteiro do filme posiciona ainda um terceiro elemento masculino na equação, que cumpre o papel do invasor. Multiplicam-se os agressores e as origens da ameaça. A “transferência de culpa” (para empregar um termo em voga na literatura sobre Hitchcock) para o amante não é insignificante. Fazer dele um cúmplice do pacto masculino – acordo tácito de manutenção da ordem patriarcal – é um dos gestos mais interessantes da máquina anônima chamada Um Crime Perfeito

Luiz Fernando Coutinho