Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002)

A morte de Eduardo Coutinho acaba de completar uma década e pouco mais de vinte anos nos separam de Edifício Master (2002), mas consolidado a muito tempo como um dos nossos últimos clássicos. Filmado inteiramente no tal edifício, seu projeto está baseado em entrevistar, ao longo de uma semana, alguns dos moradores dentro dos seus apartamentos, no tradicional bairro de Copacabana, conhecido como um lugar de complexidade social e aglomeração urbana. Master, o edifício, parece concentrá-lo e o filme de Eduardo Coutinho se dispõe a ver quais são as figuras presentes nesse lugar. Em comum entre todas essas pessoas, a priori, está apenas o fato de morarem no mesmo prédio.

A primeira entrevistada resume a história do Master, durante décadas um local de prostituição, mas que, nos anos recentes, após uma reforma administrativa, tornou-se um “prédio familiar”. A mulher nos conta que passou toda a sua vida no edifício, morando em 28 apartamentos diferentes, a maioria deles junto de sua mãe. Tudo por uma razão peculiar: decoravam muito bem os apartamentos em que moravam, chamando a atenção dos vizinhos que passam por eles admirados e, desejosos de se mudar para ali, sublocavam o cenário todo montado. Mãe e filha seguiam no mesmo prédio e faziam o mesmo com um novo espaço, sobrevivendo financeiramente das sucessivas trocas.

Master está localizado em um bairro nobre do Rio de Janeiro, a não mais de cem metros da praia, conforme diz a voz off de Coutinho a princípio, anunciando o projeto do filme: “Alugamos um apartamento no prédio por um mês. Com três equipes, filmamos a vida no prédio durante uma semana”. Seus moradores, em geral, pertencem a classe média e cada um dos seus apartamentos tem pouco menos de 50m², todos semelhantes em seu tamanho e configuração de planta. O aspecto de cada um desses apartamentos é, inevitavelmente, um prolongamento da personalidade de quem nele habita, apresentando decorações distintas: alguns cobertos de cortinas e tecidos pesados; outros de móveis de madeira de antiquário; por vezes repletos de imagens religiosas; raramente vazios, com pouquíssima ou nenhuma decoração. Há pessoas que apresentam essa casa com mais orgulho, que fazem uma espécie de visita guiada para a câmera, e outras que são vistas apenas em um recorte fechado, sem vistas ao seu entorno.

Edifício Master (2002)

A maioria dos entrevistados de Edifício Master possui entre 40 e 60 anos de idade, sendo raros os jovens habitantes do prédio. Cada um deles narra algum aspecto de sua biografia, sejam os casamentos anteriores, sejam as suas profissões, sejam os relacionamentos familiares. Numa das entrevistas, um homem que mal se apresentou já se despede e nos surpreende a brevidade de sua presença em cena. Ao longo da despedida é que seu relato se desdobra, ele lembra da mãe que faleceu ao seu lado em Brasília e, aqui está a parte desestabilizante do relato, o que mais o emociona é a sua gratidão pelo empregador que o permitiu viajar para estar junto dela. O homem parece chorar não pela mãe falecida, mas pelo orgulho de ser reconhecido como um bom funcionário. Um caso semelhante acontece com Esther, que diz que vestiu uma calça comprida para se jogar pela janela, depois de sofrer um assalto, mas desistiu de se matar por se lembrar das dívidas que ainda tinha a pagar.

Na maior parte dos casos, tratam-se de histórias comuns, casos de vida como se poderiam encontrar em outros lugares e contextos, sem fatos extraordinários, mas talvez apenas em um bairro como Copacabana e em um edifício como o Master, se encontraria uma diversidade semelhante, reunida a poucos metros quadrados. As instituições sociais, a precariedade do trabalho, a violência urbana, temas que podem ser encontrados em qualquer manchete de jornal, são discutidos ali. Há também ressentimento, mesquinharia e crueldade em alguns dos relatos dos entrevistados, que afirmam imagens negativas não apenas do mundo, mas por vezes também de si mesmos. O bairro de Copacabana, como todos os demais lugares, é apenas evocado nessas conversas. Não veremos as suas ruas, nem a orla da praia; as janelas, quando mostradas, dão sempre de frente a outras janelas.

Edifício Master (2002)

Edifício Master se inicia com um plano que mostra através do monitor das câmeras de segurança, a equipe de quatro ou cinco pessoas entrando no prédio e subindo juntas no mesmo elevador. Uma incorporação decisiva, retomada em diversos outros momentos, daquilo que está por trás das câmeras, o trabalho de feitura do filme e a equipe reduzida que o torna possível. É frequente que haja também, aqui e em outros filmes de Coutinho, o momento da primeira abordagem do diretor ao entrevistado. Em cada uma das vezes, essa abordagem é distinta, mas geralmente, a equipe chega, pede licença, dá bom dia, apertam as mãos e fazem comentários ligeiros: é um ritual de apresentação, o convite a entrada no apartamento, os cumprimentos iniciais, a apresentação do diretor, situações que ocorrem sob humores distintos de acordo com cada entrevistado. Tudo com a câmera na mão, em movimento, até que o próximo plano já mostre o entrevistado sentado e preparado para falar. A partir deste corte, a câmera fixa o primeiro plano como padrão das entrevistas, direcionando a atenção do espectador estritamente para a fala e as expressões faciais dos entrevistados, cujo nome logo é assinalado no canto da tela.

Edifício Master (2002)

Para além da dimensão pessoal de cada fala, os relatos são potencializados pelas condições semelhantes de apresentação das suas personagens, presentes a solo, em pares ou trios, sempre dentro do seu apartamento, que compreende um bloco demarcado do filme, sem voltar a aparecer em outros momentos. A montagem opera sobretudo no interior de cada bloco em particular, costurando apenas as falas de uma mesma personagem, não entre diferentes participantes do filme. Edifício Master compreende um mosaico, em que o que se diz no princípio pode ser espelhado muitas entrevistas mais tarde, estabelecendo retornos e paralelos entre pessoas e partes distantes do filme, através de temas e reações em comum. As recorrências, assim, são mais surpreendentes e as tensões entre as personagens ganham mais força pelo seu acúmulo sequencial e pela aparência de espontaneidade no desdobramento do filme.

Contribui neste sentido a escolha por manter, tanto quanto possível, a ordem cronológica das entrevistas na montagem, não buscar agrupar os relatos por temas ou perfis dos entrevistados, mas deixar que as relações entre as suas falas possam ser projetadas ao longo da sua duração. Em entrevista à Contracampo, Eduardo Coutinho esclarece suas operações de montagem: “O homem do Frank Sinatra […] é o personagem mais evidente, meio óbvio. Tanto é evidente que filmamos em último lugar e alteramos a ordem porque seria chantagem emocional. Nesse tipo de filme, não poderia ter. Então o colocamos no meio do filme. Fora isso, separamos duas tentativas de suicídio, que estavam grudadas na ordem cronológica, e três que cantavam, pois estavam um seguido do outro”. [1]

Dentre as entrevistadas, há uma particularmente interessante pela sua escassez de histórias para contar. É a última participante do filme, que acaba de chegar à capital, vinda do interior do estado. Essa jovem, de aparentes 17 ou 18 anos, faz uma figura ingênua, que se senta no chão e, quando a equipe entra no apartamento, estende a mão a Coutinho, perguntando “quem é você?”. Ao longo da entrevista, fala sobretudo sobre sua mãe e seu avô, que a enviaram ao Rio para fazer um curso de pré-vestibular. Está no Master a pouco tempo e nem sequer conhece os seus vizinhos; apenas, segundo ela, dias antes da filmagem pôde ver pela primeira vez quem era a criança que escutava brincar e conhecia apenas o nome. Depois de muitos relatos emocionados, é significativo que Coutinho e sua equipe tenham deixado esta como última entrevistada do filme, encerrando o filme com uma personagem serena, que parece não ter muitas histórias para contar, ainda não sofreu o trauma, o evento dramático, que as outras pessoas relatam, como se sua história pessoal ainda estivesse por ser escrita. “Ainda não sei o que eu quero ser”, é a última frase com a qual o filme termina, sendo esta a única participante do filme que fala sobre as expectativas de sua vida futura, não do passado.

As primeiras entrevistas para Edifício Master, no entanto, não são feitas por Coutinho, mas pela sua equipe de pesquisa, que durante um mês alugou um apartamento no prédio, conhecendo e entrevistando alguns dos seus moradores, no processo de pesquisa dos participantes do filme e, depois, exibindo as entrevistas filmadas para Coutinho no apartamento onde aconteciam as primeiras discussões sobre os possíveis entrevistados e a concepção das ideias cinematográficas e do mecanismo conceitual do filme. Acompanhamos este processo no documentário dirigido por Beth Formaggini, Coutinho.doc: Apartamento 608 (2009), que acompanha de perto o que se passa na base de produção. Ali o diretor e a equipe assistem a estas entrevistas de pesquisa, cujo material editado com as participantes do filme final se encontra nos extras do DVD de Edifício Master, dispondo as falas seguindo a ordem que os mesmos entrevistados são apresentados no filme. [2] [3]

Neste contato inicial, alguns dos moradores abordados desconfiam da filmagem, questionam as razões de serem entrevistadas, o que será feito dessas imagens, hesitantes da presença da câmera e de sua participação no filme. Os entrevistadores procuram saber quem elas são, ouvindo suas histórias de vida, pouco a pouco convencendo-as de seguir adiante e ajudando a definir alguns dos temas que poderiam “contar para o diretor”, quando acontecer a filmagem de fato. Cria-se, assim, uma expectativa para quando Coutinho entrará em cena, para a situação especial que será a filmagem com ele, e é importante para o projeto que ele se mantenha afastado até então, para que os entrevistados tenham um novo estímulo de também contar a ele pela primeira vez essas histórias. Nestas conversas iniciais, vemos ao mesmo tempo a preparação da peça e o ensaio com os atores, que, mais tarde, vão tentar convencer o diretor das suas performances.

Em cada entrevista presente em Edifício Master, portanto, estamos diante de uma reencenação. As personagens se vestem e se maquiam para o filme, assim como as assistentes frequentemente as lembram de falas que haviam combinado na preparação. Ao fim de algumas das participações, Coutinho questiona as performances e pergunta aos entrevistados sobre as razões do seu comportamento ao longo da fala. “Por que você não olhou para a câmera?”, ele diz a Daniela, que lê um poema. “Qual foi a mentira que você contou?”, pergunta à Alessandra, que conta sobre sua vida como prostituta. Esta última é especial para os rumos de Edifício Master. Ao fim da sua entrevista de seleção, diz que, para o dia da filmagem com Coutinho, deseja se apresentar como garota de programa, se vestindo a caráter frente para ser mais convincente nas histórias que vai contar. Dentre as possibilidades do seu relato, ela poderia escolher pelo papel de mãe, de jovem, de imigrante, de alcoólatra, mas ela quer interpretar este outro papel, que diz ser a “Alessandra da noite”. Vemos em Apartamento 608 a reação de Coutinho aos testes que assiste, inicialmente desinteressado pelas personagens de classe média e desacreditado dos rumos do projeto pela maior parte da preparação, o diretor ganha um novo ânimo a partir da presença de Alessandra. Em uma reunião marcada com a equipe, que esperava pela sua desistência, ele reafirma o desejo de levar o projeto adiante, deixando claras as suas novas ambições: “Eu queria que houvesse mais invenção, mais mentira. […] Essa mulher é maravilhosa porque ela vai ser um teatro”. [4]

Em Apartamento 608, a primeira entrevista realizada para o filme, quando Coutinho está finalmente a frente do entrevistado, é feita com Sérgio, o síndico do prédio, que recebe a equipe na porta do seu apartamento, como os demais participantes. Em Edíficio Master, no entanto, a introdução do entrevistado se dá de outra forma, em um plano que se inicia com a câmera na área do prédio, passando alguns dos moradores sentados a uma mesa, entrando por uma porta e encontrando o síndico sentado atrás de uma mesa de escritório, num ambiente completamente distinto. Fica claro que Coutinho e sua equipe deliberadamente refizeram a sua entrevista, inserindo esse personagem em um contexto próprio ao papel distinto que ele representa no prédio, que não é apenas de mais um morador comum.

Sérgio em Coutinho.doc: Apartamento 608 (2009)
Sérgio em Edifício Master (2002)

Ao final do making of de Formaggini, está presente a filmagem da que é talvez a cena mais conhecida de Edifício Master, quando um dos entrevistados canta “My Way” de Frank Sinatra. A princípio, no entanto, aquilo que toca no seu rádio é “New York, New York”, mas Coutinho interrompe a gravação e exige que ele troque para a outra música. Sabemos que o homem canta por três vezes e, após a última, vemos Coutinho entusiasmado, exclamando para a câmera de Apartamento 608: “É ficção pura! O documentário é isso”. Coutinho dirige o entrevistado como faria o diretor de um longa narrativo, introduz aquilo que quer de sua representação, prepara a emoção que deseja alcançar – com sucesso, afinal, trata-se da cena mais lembrada e comentada do filme. A visão de sua feitura desmonta a lógica convencional do documentário como registro do “real” e “espontâneo” e revela o modo como o trabalho de Coutinho passa por esse tipo de elaboração ficcional, tanto por parte dos entrevistados quando do entrevistador, ainda que detido sobre parâmetros bem definidos de uma abordagem própria ao registro documental, fiel à situação de filmagem e consciente dos dilemas éticos e estéticos de apresentar pessoas reais, que contam as suas histórias.

Acompanhamos, através do conjunto deste material – Edíficio Master, Apartamento 608 e as entrevistas de pesquisa – a descoberta gradual de como é esse filme que devem fazer, a sua formulação de acordo com o contexto delimitado, adaptando-se às restrições que o espaço e a matéria verbal de seus entrevistados apresentam: em resumo, o que vemos é a invenção de uma forma fílmica, em um trabalho muito mais complexo do que a alcunha “documentário” pode fazer parecer. “Não vai ter o filme que eu quero, vai ter o filme que vai ser possível”, vemos o diretor comentar em certo momento. Sua filmagemnão parte de concepções pré-definidas, não se apresenta como uma reportagem e não procura provar qualquer coisa sobre estas pessoas, Copacabana, o Rio ou o Brasil. “Mostrar a alma de um prédio, o espírito de um prédio, a diversidade de vida de um prédio. O filme é isso”, diz Coutinho em certo momento da preparação. Apenas a partir desse fundamento que todas as demais questões parecem vir. Dentre as ideias fílmicas que vemos discutidas, os atores, a montagem não-linear e a ficção se destacam: algumas delas presentes em Edifício Master e outras apenas cogitadas,mas todas decisivas para que o filme possível superasse as baixas expectativas que o diretor tinha a princípio e igualmente fundamentais para que o filme que Coutinho realmente queria fazer seja concluído cinco anos mais tarde, chamado Jogo de Cena (2007).

Matheus Zenom

Coutinho pede para trocar a música, em Apartamento 608 (2009)

Notas:

[1] Entrevista disponível em: http://www.contracampo.com.br/45/entrevistacoutinho.htm

[2] Este material de pesquisa está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kpRCNqjwQ5c

[3] O making of de Beth Formaggini também está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z3OA_n4U4HM

[4] Alessandra, afinal, não cumpre totalmente a sua promessa, pois se apresenta vestida com roupas casuais e garante a Coutinho que não mentiu em nada na entrevista. Os 100 reais gastos no McDonald’s põem isso em questão, no entanto.